Um dos neologismos mais sensacionais dos últimos tempos, na minha modesta opinião, é “enossexual” – o sujeito tão fissurado em vinho, mas tão fissurado, que a apreciação da bebida virou parte integrante da libido dele. Para um abstêmio como eu, essa fixação pelo sabor do álcool beira o incompreensível, mas o fato é que entornar o caneco é um prazer quase universal entre seres humanos. Qualquer sociedade do passado ou do presente com acesso a vegetais fermentáveis deu um jeito de produzir birita a partir deles. E se por acaso essa invenção tão indispensável não ocorreu a determinado grupo, você pode apostar que seus membros abraçaram o costume com o máximo entusiasmo assim que forasteiros o trouxeram. Será que isso quer dizer alguma coisa sobre o nosso passado evolutivo?
A resposta curta a essa pergunta ainda é um modesto “não sabemos”, mas há uma série de indícios intrigantes, embora ainda um tanto desconexos, sugerindo uma coevolução, ou convivência evolutiva de longo prazo, entre o organismo dos nossos ancestrais e doses moderadas de álcool. Um dos dados mais recentes e divertidos envolve a criaturinha acima, um musaranho-arborícola (nome científico: Ptilocercus lowii) das florestas da Malásia Ocidental. A maior parte da dieta do bicho consiste em… cerveja de palmeira. Sério.
Tive o prazer de escrever sobre essa espécie de musaranho-arborícola no ano passado, quando pesquisadores liderados por Frank Wiens, da Universidade de Bayreuth, na Alemanha, descreveram a dieta do bicho na revista científica “PNAS”. O pequeno mamífero se alimenta do néctar abundante produzido por uma palmeira malaia, o qual fica armazenado em flores duras e côncavas, que mais parecem câmaras de fermentação. E, de fato, uma comunidade de microrganismos coloniza esses tanques naturais, produzindo álcool. A proporção etílica no néctar chega a 4%, valor comparável à da cerveja.
Parentesco e suborno
Talvez você esteja se perguntando qual a relevância de um bichinho malaio para a relação do homem com as bebidas alcoólicas. Pois não se deixe levar para as aparências: os musaranhos-arborícolas são parentes próximos dos primatas, grupo que inclui lêmures, macacos e humanos. Acredita-se que os mais antigos primatas eram criaturas parecidíssimas com os musaranhos-arborícolas, o que faz do animalzinho um possível bom modelo para as fases mais recuadas de nossa trajetória evolutiva. Mais importante ainda, os musaranhos-arborícolas ilustram um tema mais geral do triângulo animais-plantas-birita: troca de favores. Digamos que a palmeira está fazendo uma oferta irrecusável ao bicho: eu te pago uma bebida e você me ajuda na reprodução.
No caso do musaranho-arborícola, o néctar é uma forma de atrair animais capazes de dispersar o pólen da planta (tanto que a produção de frutos do vegetal cai pela metade quando não existem pequenos animais circulando pelas flores). No caso de inúmeros outros mamíferos, principalmente macacos e afins, o álcool não está presente no néctar, mas nas frutas de muitas plantas. Especialmente em ambientes tropicais, o resultado inevitável de produzir um fruto suculento e repleto de açúcar é a fermentação – e a transformação de parte do conteúdo em álcool. Frutas maduras podem alcançar teores alcoólicos de até 5% na África ao sul do Saara, justamente o lugar onde os ancestrais diretos do homem evoluíram.
A troca de favores, mais uma vez, torna-se clara: a planta providencia uma polpa suculenta e com leve teor etílico (quase um licor, digamos) e o mamífero faz a gentileza de dispersar as sementes depois de comer a fruta, ainda por cima dando uma “gorjeta” de esterco ao vegetal-garçom quando defeca as sementes. Para os propósitos desta discussão, não é preciso especificar se a produção de álcool é “planejada” pelo desenvolvimento dos frutos ou se é apenas um subproduto da quantidade de açúcar neles. O fato inevitável é que o álcool aparece em quantidades apreciáveis e é aproveitado como recurso energético pelos animais comedores de frutas.
O comportamento aparece entre gorilas, bugios, macacos-aranhas, elefantes, morcegos e até moscas-das-frutas, as quais, aliás, usam o cheiro alcoólico como um bom indicador de frutos maduros por perto, diz Robert Dudley, pesquisador da Universidade da Califórnia em Berkeley (EUA). Cerca de 10% das enzimas do fígado humano servem para produzir energia a partir de álcool. É bem possível, portanto, que a nossa linhagem tenha adquirido o gosto por uma bebidinha usando o álcool como um importante recurso alimentar adicional quando nossos ancestrais devoravam frutas. Os efeitos psicoativos podem ter funcionado como uma atração a mais, gerando, em última instância, o interesse quase universal dos seres humanos pela água que passarinho não bebe.
Exagero
Nada disso mudou muito com a invenção da fermentação intencional de cereais e frutas pelas primeiras civilizações no Oriente Médio e na China. O problema, sugere Dudley, foi o surgimento das bebidas destiladas e sua popularização no Ocidente durante a Idade Média. Pela primeira vez, era possível criar bebidas com teor alcoólico muito superior ao possível em qualquer método natural. Com isso, foram potencializados os danos à saúde que o etanol, em doses menores, tinha menos risco de causar.
Desse ponto de vista, há um paralelo interessantíssimo entre o vício em álcool e problemas como a obesidade e o diabetes. Todos esses problemas são doenças da abundância, distúrbios originados do fim de um limite natural ao consumo de calorias ou de etanol. Quando passávamos fome ou só “enchíamos a cara” quando tínhamos a sorte de achar uvas um pouco além do ponto, não havia muito problema em comer ou beber demais. No entanto, com a disponibilidade excessiva dessas fontes energéticas, é muito fácil se tornar obeso ou pinguço. E o nosso organismo não teve tempo evolutivo de desenvolver mecanismos para evitar o exagero ou para metabolizá-lo sem problemas, ao contrário dos musaranhos-arborícolas, que evoluíram para lidar com uma dieta exclusivamente alcoólica.
Reconhecer que o prazer da bebida faz parte dessa herança biológica profunda e complicada ajuda a entender a atração fatal que ele exerce. Pode até ser que os musaranhos-arborícolas forneçam pistas sobre como beber à vontade sem riscos de ressaca ou cirrose. Por enquanto, o conselho é o de sempre: beba com moderação.
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