O escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, que
criou o famoso detetive Espinosa, já atuou academicamente nos campos da
Filosofia e Psicanálise. Ele fala da relação entre suas antigas escolhas
e o ato de escrever ficção policial e da sua relação com a cidade
Por Áurea Maria Xavier
Foi através das histórias policiais que me apaixonei pelo Rio de
Janeiro e fiz determinadas escolhas. Mas morar no Rio não é viver um
romance e a vida não transcorre tal como num livro. Naquele dia, no
entanto, abriu-se um buraco na realidade e finalmente eu poderia
adentrar o universo das histórias que me transformaram. Caminharia pelo
centro da cidade num dia frio de outono, contrariando todas as
expectativas da dura rotina, e me sentaria para ouvir o escritor contar
sobre as histórias que inventa.
Foto Reprodução: Google |
O simpático senhor
de 72 anos abriu a porta, enxugou as mãos que acabara de lavar e me
cumprimentou. Eu estava esbaforida, após uma rápida caminhada, da rua do
Lavradio, na Lapa, até aquele 9º andar do prédio à beira-mar, no
Castelo. Meu semblante alterado descompunha a tranquilidade do lugar e
do escritor a minha frente, que me convidou a lavar o rosto e a beber um
pouco de água.
Uma pequena mesa de madeira, onde
reflete a bela luz vinda da Marina da Glória pela ampla janela. À
esquerda, a enorme estante, repleta de livros de ficção, toma a parede
até o teto. À direita, mais livros acomodados no largo rack. E, ao
longe, o som constante da cidade que inspira. Nesse ambiente, Luiz
Alfredo Garcia-Roza – cujo primeiro livro, O Silêncio da Chuva (1996),
lhe rendeu os prêmios Jabuti e Nestlé de Literatura – concebeu Espinosa,
o famoso delegado de suas novelas policiais. Garcia-Roza chega todo dia
às 10h da manhã no escritório e somente no fim da tarde retorna para
casa. Resolve pendências pessoais pelo centro da cidade, vai às
livrarias, mas procura dedicar o máximo de tempo possível a escrever,
isso quando consegue, já que fazer ficção não é fácil e ele é autor de
histórias mais longas que os contos. “Eu não sou um contista, só escrevi
um conto na vida, que está num livro de contos da Companhia das Letras,
de vários autores... Um deles é o meu. Eu acho conto uma coisa
extremamente difícil, isso por um lado, porque escrever romance, novela,
também não é fácil. Escrever ficção é difícil. Mas o meu jeito de
escrever pede um tempo e um espaço maior. Não sou um narrador de
histórias curtas. Eu me sinto mais à vontade escrevendo novelas e
romances, embora tenha uma boa capacidade de síntese, mas essa
capacidade prefiro usar para o trabalho conceitual, teórico, não no
trabalho ficcional, que é exatamente um lugar de liberdade”.
Escolhas
Durante anos, Garcia-Roza foi estudioso e professor nos campos da
Filosofia e da Psicanálise, escrevendo inúmeros trabalhos acadêmicos e
lecionando na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1996,
aos 60 anos, resolveu largar a Academia e se dedicar à ficção, lançando O
Silêncio da Chuva e o então inspetor de polícia, Espinosa. Não haveria
aí uma ruptura com suas antigas escolhas. Na verdade, tudo na vida de
Garcia-Roza está interligado: a paixão adolescente pela literatura, o
fascínio pelo gênero policial que, segundo ele, seduz por abordar os
dois temas essenciais para o homem – a morte e a sexualidade – e a busca
por desvendar esses mistérios da natureza humana. Estaria o autor se
preparando a vida toda para este momento, o da ficção? “Claro que me fiz
a pergunta, sobretudo quando comecei a escrever romance policial, se eu
não estava sempre na mesma área, ou seja, eu escolhi um tema e as
minhas escolhas profissionais foram variações em torno desse tema.
Primeiro a Filosofia, que seria a tomada mais aprofundada da questão,
depois a Psicanálise, que, mesmo profunda, pertence a um campo mais
restrito, e finalmente o romance policial, que é mais fechado ainda, mas
que, ao mesmo tempo, me dá maior liberdade de lidar com essas
questões”.
A cidade na narrativa policial
A forma da narrativa policial, tão bem estruturada e definida pelo seu
precursor, Edgar Allan Poe, foi a mais direta e completa que Garcia-Roza
encontrou para ingressar no universo ficcional. A cidade grande está
marcada no autor, mas não qualquer cidade e sim o Rio de Janeiro, o
bairro de Copacabana (onde nasceu), a zona sul, o centro e suas ruas
antigas e cheias de mistério. Mais um motivo para o desenvolvimento
temático da investigação criminal. Tanto para Allan Poe, como para o
filósofo e crítico literário Walter Benjamin ou para o criador de
Espinosa, a novela policial começa na cidade grande. “Não tem sentido
você ser um detetive ou ter uma agência de detetives numa cidadezinha do
interior, em que todo mundo conhece todo mundo, sabe quem são os
pilantras e quem não é, quem faz o quê... Um detetive particular numa
pequena cidade seria uma figura grotesca, uma espécie de palhaço da
turma. O investigador está intimamente ligado à cidade grande, porque é
nas cidades grandes que você se perde, que o assassino se dilui na
multidão e esse é o clima, por excelência, da investigação policial”.
Estilo Garcia-Rosa
Foto Reprodução: Google |
O detetive Espinosa surgiu de um caso policial nada convencional, o que
certamente chamou a atenção da crítica e do público e garantiu o
sucesso de Garcia-Roza em sua primeira ficção publicada. Logo na
primeira página da novela, o leitor se depara com a cena de um suicídio.
“A novela policial é muito mais do que descobrir quem matou. O próprio
crime, o assassinato, é uma coisa muito mais complexa que descobrir quem
atirou, quem enfiou a faca, quem envenenou. Então, para quebrar logo
essa coisa mecânica de quem é o assassino, eu já o ofereci no final da
primeira página, e ele era a própria vítima, foi um suicídio”. A
história se desenvolve sob duas perspectivas: a do leitor, com um
narrador revelando todos os pormenores das cenas, e a do inspetor
Espinosa, que conta apenas com as suas conjecturas e os indícios
descobertos pela polícia.
Em sua estreia, a
narrativa de Garcia-Roza surgia com riqueza de detalhes descritivos, num
agradável universo de cenários cariocas, com diálogos, na maioria das
vezes, suprimidos pelo resumo dos discursos indiretos, que davam
agilidade e fluência ao seu estilo. Em 2009, o autor já contava com nove
histórias publicadas, todas pela Companhia das Letras, estando Espinosa
presente em 8 delas. Seu nono livro é O Céu dos Origamis, Espinosa há
muito já se tornou delegado e os personagens já se dão à liberdade de
conversarem diretamente entre si, com falas mais longas e descritivas,
confundindo-se com o próprio narrador. “As mudanças foram acontecendo
intuitivamente. Sou um escritor inteiramente selvagem. Não passei por
uma depuração de aprendizagem, teórica, em oficinas literárias. Fiz as
minhas mudanças, para o bem ou para o mal, sem sequer saber que as
estava fazendo, sem parar ou deliberar que realmente estava fazendo
aquilo”.
Espinosa
Espinosa fez tanto sucesso que, por hora, não pretende se aposentar. No
entanto, ao longo dos tempos, Garcia-Roza se preocupa em dar
historicidade ao detetive. Imagina que possa fazer outras histórias em
que Espinosa não figure, mas não é uma preocupação ou projeto para o
momento. O único instante em que o delegado descansou até agora foi em
Berenice Procura, sexto romance do escritor. Ele conta a história de uma
taxista que fica sabendo de um assassinato pelos arredores e se
interessa tanto que passa a se comportar como um detetive.
Mas o delegado Espinosa ganhou vida, encorpou-se e tem alma. O autor
poderia até matá-lo, mas teria coragem? Há afeto no olhar de Garcia-Roza
ao falar do detetive. Não é à toa que deu-lhe o nome de um filósofo por
quem parece nutrir grande simpatia, Spinoza, um dos grandes
racionalistas do século XVII. “Há alguns pontos em comum entre eles.
Tanto um como outro não tem nada de super-herói. O Espinosa não é um
delegado de polícia de filme americano, ou o investigador privado, o
homem de ação, aquele de socos, etc. Ele é manso, suave, quase doce. Mas
sem ser ingênuo ou conivente com seja lá o que for, que fira seus
princípios éticos. Há entre ele e o filósofo essa semelhança, o pensador
também era tranquilo como pessoa, embora não o fosse como filósofo; seu
pensamento é de uma intensidade, de uma força estupenda e se recusa a
obedecer a exigências morais, não éticas, do credo A, do credo B, tanto
que foi excomungado pela igreja. Mas como pessoa era tranquilíssimo,
honesto e profundamente ético. O Espinosa delegado é um pouco assim”.
Esse jeito que, segundo o autor, confere uma integridade ao detetive,
faz transparecer certa inadequação de Espinosa ao ambiente policial a
que pertence. Ele se envolve com os personagens da investigação, se
deixa levar pela cidade, pelas paixões. Mas é essa empatia que muitas
vezes define a solução de um caso, mais até que as descobertas dos
indícios materiais. “Espinosa é um excêntrico, um estranho no ninho. Ele
não tem as características de um policial, o que nem sempre pega muito
bem... Ele pode ser visto como um leniente, inapto para a profissão,
ignorante nas práticas investigativas, mas isso faz parte do caráter
dele e é um subterfúgio para, passando por ingênuo, retirar do suspeito o
que pretende. Espinosa vê o crime sobretudo como um enigma, como algo
que não tem uma única solução. A natureza do enigma é a sua ambiguidade,
ele tem uma verdade, mas ela não se mostra inteiramente para você. E
esse é um ponto comum da investigação policial, psicanalítica e
filosófica também”.
Romance policial no Brasil
Diante dessa construção pouco convencional do detetive excêntrico,
perguntamo-nos de que fonte terá bebido Garcia-Roza, além dos clássicos
estrangeiros, da filosofia e da psicanálise. Haveria no Brasil um
expressivo número de autores do gênero policial? “ Eu não faço distinção
entre as minhas leituras de escritores estrangeiros e brasileiros. Leio
bastante, mas não é pra aderir a nenhum modo de escrever... Leio por
prazer, sou um leitor impressionista. Não sou analítico, teórico da
minha leitura. A não ser o mínimo de crítica que temos que ter para
distinguir se estamos fazendo uma boa ou uma má leitura”. O autor, no
entanto, não cita nomes de escritores brasileiros adeptos do gênero em
que atua. “Eu acho que ainda não dá pra falar no Brasil em literatura
policial e sim em autores brasileiros que escrevem livros policiais. Não
há nada a destacar num campo tão pequeno... Acho sim que esse campo
ainda vai produzir muita coisa. Já há solo suficiente pra novos autores
policiais surgirem... O que há é bom, até porque os que não são, não
foram publicados...”
Inspiração e desamparo
Como o próprio Garcia-Roza confessou, todas as suas escolhas
profissionais estão interligadas por uma mesma interrogação, essa que
pontua as questões fundamentais do homem. Ele traçou um caminho de muito
estudo, antes de se dar a liberdade de criar um universo de ficção para
atuar. Somente aos sessenta anos de idade, apresentou o método Espinosa
de investigação ao mundo. Alguém teria dito numa feira de livros no
interior que o professor escolheu o caminho mais fácil, que seria o da
criação ficcional. Para os maiores interessados em literatura, essa é
uma colocação até mesmo risível. “É uma ingenuidade dizer isso... Eu
acho muito mais difícil escrever ficção. No trabalho teórico, você está
sempre protegido de seus pares, comentadores, analistas daquele tema, o
próprio autor que se está estudando ou a própria teoria. Quando me
propunha a fazer algum trabalho teórico, nunca me senti sozinho, pelo
contrário, às vezes eu me sentia até excessivamente acompanhado. No caso
da ficção, você é inteiramente desamparado”.E será que resta dúvida aos
leitores de ficção sobre a solidão do processo criativo? É por isso que
o autor se retira diariamente de sua casa, onde vive com a esposa,
também escritora, e se refugia entre os sons da cidade e a vista da
Marina. “O autor literário é o desamparado por excelência, não tem a
quem pedir socorro, ajuda... O escritor de ficção é um ser absolutamente
isolado, é senhor de sua criação. E pode ser um bom ou um mau deus, mas
é ele que vai criar o seu universo”.