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sábado, 5 de maio de 2012

ESPINOSA, A LITERATURA E A INVESTIGAÇÃO


O escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, que criou o famoso detetive Espinosa, já atuou academicamente nos campos da Filosofia e Psicanálise. Ele fala da relação entre suas antigas escolhas e o ato de escrever ficção policial e da sua relação com a cidade

Por Áurea Maria Xavier


Foi através das histórias policiais que me apaixonei pelo Rio de Janeiro e fiz determinadas escolhas. Mas morar no Rio não é viver um romance e a vida não transcorre tal como num livro. Naquele dia, no entanto, abriu-se um buraco na realidade e finalmente eu poderia adentrar o universo das histórias que me transformaram. Caminharia pelo centro da cidade num dia frio de outono, contrariando todas as expectativas da dura rotina, e me sentaria para ouvir o escritor contar sobre as histórias que inventa.
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Foto Reprodução: Google
O simpático senhor de 72 anos abriu a porta, enxugou as mãos que acabara de lavar e me cumprimentou. Eu estava esbaforida, após uma rápida caminhada, da rua do Lavradio, na Lapa, até aquele 9º andar do prédio à beira-mar, no Castelo. Meu semblante alterado descompunha a tranquilidade do lugar e do escritor a minha frente, que me convidou a lavar o rosto e a beber um pouco de água.
Uma pequena mesa de madeira, onde reflete a bela luz vinda da Marina da Glória pela ampla janela. À esquerda, a enorme estante, repleta de livros de ficção, toma a parede até o teto. À direita, mais livros acomodados no largo rack. E, ao longe, o som constante da cidade que inspira. Nesse ambiente, Luiz Alfredo Garcia-Roza – cujo primeiro livro, O Silêncio da Chuva (1996), lhe rendeu os prêmios Jabuti e Nestlé de Literatura – concebeu Espinosa, o famoso delegado de suas novelas policiais. Garcia-Roza chega todo dia às 10h da manhã no escritório e somente no fim da tarde retorna para casa. Resolve pendências pessoais pelo centro da cidade, vai às livrarias, mas procura dedicar o máximo de tempo possível a escrever, isso quando consegue, já que fazer ficção não é fácil e ele é autor de histórias mais longas que os contos. “Eu não sou um contista, só escrevi um conto na vida, que está num livro de contos da Companhia das Letras, de vários autores... Um deles é o meu. Eu acho conto uma coisa extremamente difícil, isso por um lado, porque escrever romance, novela, também não é fácil. Escrever ficção é difícil. Mas o meu jeito de escrever pede um tempo e um espaço maior. Não sou um narrador de histórias curtas. Eu me sinto mais à vontade escrevendo novelas e romances, embora tenha uma boa capacidade de síntese, mas essa capacidade prefiro usar para o trabalho conceitual, teórico, não no trabalho ficcional, que é exatamente um lugar de liberdade”.
Escolhas
Durante anos, Garcia-Roza foi estudioso e professor nos campos da Filosofia e da Psicanálise, escrevendo inúmeros trabalhos acadêmicos e lecionando na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 1996, aos 60 anos, resolveu largar a Academia e se dedicar à ficção, lançando O Silêncio da Chuva e o então inspetor de polícia, Espinosa. Não haveria aí uma ruptura com suas antigas escolhas. Na verdade, tudo na vida de Garcia-Roza está interligado: a paixão adolescente pela literatura, o fascínio pelo gênero policial que, segundo ele, seduz por abordar os dois temas essenciais para o homem – a morte e a sexualidade – e a busca por desvendar esses mistérios da natureza humana. Estaria o autor se preparando a vida toda para este momento, o da ficção? “Claro que me fiz a pergunta, sobretudo quando comecei a escrever romance policial, se eu não estava sempre na mesma área, ou seja, eu escolhi um tema e as minhas escolhas profissionais foram variações em torno desse tema. Primeiro a Filosofia, que seria a tomada mais aprofundada da questão, depois a Psicanálise, que, mesmo profunda, pertence a um campo mais restrito, e finalmente o romance policial, que é mais fechado ainda, mas que, ao mesmo tempo, me dá maior liberdade de lidar com essas questões”.
A cidade na narrativa policial
A forma da narrativa policial, tão bem estruturada e definida pelo seu precursor, Edgar Allan Poe, foi a mais direta e completa que Garcia-Roza encontrou para ingressar no universo ficcional. A cidade grande está marcada no autor, mas não qualquer cidade e sim o Rio de Janeiro, o bairro de Copacabana (onde nasceu), a zona sul, o centro e suas ruas antigas e cheias de mistério. Mais um motivo para o desenvolvimento temático da investigação criminal. Tanto para Allan Poe, como para o filósofo e crítico literário Walter Benjamin ou para o criador de Espinosa, a novela policial começa na cidade grande. “Não tem sentido você ser um detetive ou ter uma agência de detetives numa cidadezinha do interior, em que todo mundo conhece todo mundo, sabe quem são os pilantras e quem não é, quem faz o quê... Um detetive particular numa pequena cidade seria uma figura grotesca, uma espécie de palhaço da turma. O investigador está intimamente ligado à cidade grande, porque é nas cidades grandes que você se perde, que o assassino se dilui na multidão e esse é o clima, por excelência, da investigação policial”.
Estilo Garcia-Rosa
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Foto Reprodução: Google
O detetive Espinosa surgiu de um caso policial nada convencional, o que certamente chamou a atenção da crítica e do público e garantiu o sucesso de Garcia-Roza em sua primeira ficção publicada. Logo na primeira página da novela, o leitor se depara com a cena de um suicídio. “A novela policial é muito mais do que descobrir quem matou. O próprio crime, o assassinato, é uma coisa muito mais complexa que descobrir quem atirou, quem enfiou a faca, quem envenenou. Então, para quebrar logo essa coisa mecânica de quem é o assassino, eu já o ofereci no final da primeira página, e ele era a própria vítima, foi um suicídio”. A história se desenvolve sob duas perspectivas: a do leitor, com um narrador revelando todos os pormenores das cenas, e a do inspetor Espinosa, que conta apenas com as suas conjecturas e os indícios descobertos pela polícia.
Em sua estreia, a narrativa de Garcia-Roza surgia com riqueza de detalhes descritivos, num agradável universo de cenários cariocas, com diálogos, na maioria das vezes, suprimidos pelo resumo dos discursos indiretos, que davam agilidade e fluência ao seu estilo. Em 2009, o autor já contava com nove histórias publicadas, todas pela Companhia das Letras, estando Espinosa presente em 8 delas. Seu nono livro é O Céu dos Origamis, Espinosa há muito já se tornou delegado e os personagens já se dão à liberdade de conversarem diretamente entre si, com falas mais longas e descritivas, confundindo-se com o próprio narrador. “As mudanças foram acontecendo intuitivamente. Sou um escritor inteiramente selvagem. Não passei por uma depuração de aprendizagem, teórica, em oficinas literárias. Fiz as minhas mudanças, para o bem ou para o mal, sem sequer saber que as estava fazendo, sem parar ou deliberar que realmente estava fazendo aquilo”.
Espinosa
Espinosa fez tanto sucesso que, por hora, não pretende se aposentar. No entanto, ao longo dos tempos, Garcia-Roza se preocupa em dar historicidade ao detetive. Imagina que possa fazer outras histórias em que Espinosa não figure, mas não é uma preocupação ou projeto para o momento. O único instante em que o delegado descansou até agora foi em Berenice Procura, sexto romance do escritor. Ele conta a história de uma taxista que fica sabendo de um assassinato pelos arredores e se interessa tanto que passa a se comportar como um detetive.
Mas o delegado Espinosa ganhou vida, encorpou-se e tem alma. O autor poderia até matá-lo, mas teria coragem? Há afeto no olhar de Garcia-Roza ao falar do detetive. Não é à toa que deu-lhe o nome de um filósofo por quem parece nutrir grande simpatia, Spinoza, um dos grandes racionalistas do século XVII. “Há alguns pontos em comum entre eles. Tanto um como outro não tem nada de super-herói. O Espinosa não é um delegado de polícia de filme americano, ou o investigador privado, o homem de ação, aquele de socos, etc. Ele é manso, suave, quase doce. Mas sem ser ingênuo ou conivente com seja lá o que for, que fira seus princípios éticos. Há entre ele e o filósofo essa semelhança, o pensador também era tranquilo como pessoa, embora não o fosse como filósofo; seu pensamento é de uma intensidade, de uma força estupenda e se recusa a obedecer a exigências morais, não éticas, do credo A, do credo B, tanto que foi excomungado pela igreja. Mas como pessoa era tranquilíssimo, honesto e profundamente ético. O Espinosa delegado é um pouco assim”.
Esse jeito que, segundo o autor, confere uma integridade ao detetive, faz transparecer certa inadequação de Espinosa ao ambiente policial a que pertence. Ele se envolve com os personagens da investigação, se deixa levar pela cidade, pelas paixões. Mas é essa empatia que muitas vezes define a solução de um caso, mais até que as descobertas dos indícios materiais. “Espinosa é um excêntrico, um estranho no ninho. Ele não tem as características de um policial, o que nem sempre pega muito bem... Ele pode ser visto como um leniente, inapto para a profissão, ignorante nas práticas investigativas, mas isso faz parte do caráter dele e é um subterfúgio para, passando por ingênuo, retirar do suspeito o que pretende. Espinosa vê o crime sobretudo como um enigma, como algo que não tem uma única solução. A natureza do enigma é a sua ambiguidade, ele tem uma verdade, mas ela não se mostra inteiramente para você. E esse é um ponto comum da investigação policial, psicanalítica e filosófica também”.
Romance policial no Brasil
Diante dessa construção pouco convencional do detetive excêntrico, perguntamo-nos de que fonte terá bebido Garcia-Roza, além dos clássicos estrangeiros, da filosofia e da psicanálise. Haveria no Brasil um expressivo número de autores do gênero policial? “ Eu não faço distinção entre as minhas leituras de escritores estrangeiros e brasileiros. Leio bastante, mas não é pra aderir a nenhum modo de escrever... Leio por prazer, sou um leitor impressionista. Não sou analítico, teórico da minha leitura. A não ser o mínimo de crítica que temos que ter para distinguir se estamos fazendo uma boa ou uma má leitura”. O autor, no entanto, não cita nomes de escritores brasileiros adeptos do gênero em que atua. “Eu acho que ainda não dá pra falar no Brasil em literatura policial e sim em autores brasileiros que escrevem livros policiais. Não há nada a destacar num campo tão pequeno... Acho sim que esse campo ainda vai produzir muita coisa. Já há solo suficiente pra novos autores policiais surgirem... O que há é bom, até porque os que não são, não foram publicados...”
Inspiração e desamparo
Como o próprio Garcia-Roza confessou, todas as suas escolhas profissionais estão interligadas por uma mesma interrogação, essa que pontua as questões fundamentais do homem. Ele traçou um caminho de muito estudo, antes de se dar a liberdade de criar um universo de ficção para atuar. Somente aos sessenta anos de idade, apresentou o método Espinosa de investigação ao mundo. Alguém teria dito numa feira de livros no interior que o professor escolheu o caminho mais fácil, que seria o da criação ficcional. Para os maiores interessados em literatura, essa é uma colocação até mesmo risível. “É uma ingenuidade dizer isso... Eu acho muito mais difícil escrever ficção. No trabalho teórico, você está sempre protegido de seus pares, comentadores, analistas daquele tema, o próprio autor que se está estudando ou a própria teoria. Quando me propunha a fazer algum trabalho teórico, nunca me senti sozinho, pelo contrário, às vezes eu me sentia até excessivamente acompanhado. No caso da ficção, você é inteiramente desamparado”.E será que resta dúvida aos leitores de ficção sobre a solidão do processo criativo? É por isso que o autor se retira diariamente de sua casa, onde vive com a esposa, também escritora, e se refugia entre os sons da cidade e a vista da Marina. “O autor literário é o desamparado por excelência, não tem a quem pedir socorro, ajuda... O escritor de ficção é um ser absolutamente isolado, é senhor de sua criação. E pode ser um bom ou um mau deus, mas é ele que vai criar o seu universo”.