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sexta-feira, 20 de março de 2009

Fênix




Que tipo de associações a palavra “fênix” (substantivo comum ou próprio) traz à sua cabeça? Nos últimos dias, ao menos para mim, ela conjura imagens dos recentes gols de Ronaldo Fofômeno, digo, Fenômeno, o maior especialista em ressurgir das cinzas do futebol brasileiro. Também me lembra um conto de Neil Gaiman (ele mesmo, o homem da série de quadrinhos “Sandman”) sobre uma sociedade gastronômica que captura, cozinha e come a própria ave Fênix da mitologia, com consequências interessantes. A verdadeira fênix, entretanto, não tem asas, mas tentáculos, e já invadiu os mares do mundo inteiro. Seu nome é Turritopsis nutricula, e ela é uma água-viva.

Se as observações feitas em laboratório estiverem corretas, a T. nutricula é o único animal do nosso planeta a alcançar a imortalidade biológica. Tal como a ave da mitologia, ela alcance o auge do seu ciclo de vida e se reproduz para, num passe de mágica celular, retornar à configuração que tinha no início. Compreender direito esse bicho maluco pode ser a chave para determinar de uma vez por todas se o envelhecimento e a morte são inseparáveis da nossa condição de seres vivos complexos ou se eles são o subproduto de processos que podem ser retardados ou evitados por completo.

Medusas e pólipos
Antes de entrar no mérito dessa questão, no entanto, é bom darmos uma rápida passada de olhos sobre o ciclo de vida da água-viva-fênix. Como boa parte de suas parentas, a T. nutricula se alterna entre dois tipos muito diferentes de indivíduo. Uma das formas é um nadador solitário que se reproduz de forma sexuada (trata-se do que nós normalmente chamamos de medusa ou água-viva). A outra é um pólipo, ou hidróide, criatura sedentária que mais parece uma planta, como os corais e as anênomas, e forma colônias com muitos “indivíduos”, reproduzindo-se de forma assexuada.

Muitas outras espécies de água-viva são capazes de voltar ao formato de pólipo quando ainda estão no comecinho de sua fase de medusa, mas perdem completamente essa capacidade pouco antes de se destacarem em definitivo da colônia sedentária onde se originam. Nesse ponto é que a T. nutricula é sui generis. Os biólogos verificaram que, mesmo quando a medusa está totalmente formada e nadando água afora, o retorno à fase imóvel é possível e ocorre com facilidade.

Alterações ambientais como falta de alimento, queda na temperatura da água, redução do teor de sal no líquido ou ferimentos no “sino” (a parte abaulada da criatura, acima dos tentáculos) são suficientes para engendrar essa “volta à infância” nas medusas jovens. No entanto, nada disso era necessário no caso das águas-vivas sexualmente maduras: todas elas (por favor, grife mentalmente a palavra “todas”) rejuvenesceram espontaneamente. Não foi possível detectar uma única morte natural sequer, que é o que aconteceria com qualquer outro tipo de água-viva: a fase de medusa normalmente não passa de um estágio reprodutivo de curta duração, após o qual o indivíduo “morre de morte morrida”.

É de entortar os miolos de qualquer cidadão, para dizer o mínimo. Isso porque tudo o que sabemos (ou que achamos que sabemos) a respeito dos processos de envelhecimento e morte sugerem que nenhum organismo que já se reproduziu de forma sexuada tem “incentivos” biológicos para continuar vivo indefinidamente. Esse, ao menos, é o ponto de vista dominante entre os teóricos da biologia evolutiva.

De forma muito resumida, a impressão que se tem é que não existe um programa detalhado para conduzir os animais e plantas ao envelhecimento e ao túmulo. (Há controvérsias. Por exemplo, existe uma espécie de “tique-taque” ligado ao número de divisões que uma célula consegue realizar antes de “caducar”. Deixemos isso para lá por enquanto.) O que acontece é que, ao transferirmos grande parte dos nossos recursos e energias biológicos para a reprodução por meio do sexo, nosso organismo acaba deixando de lado, ao menos em termos relativos, a manutenção de seu dia-a-dia.

Com isso, aumenta a chance do acúmulo de pequenos defeitos moleculares e celulares os quais, após a maturidade sexual e a reprodução, acabam conduzindo a todos para aquele lugarzinho desagradável sete palmos debaixo da terra. De quebra, pode muito bem existir um conflito de interesses: os mesmos genes que, na juventude, favorecem a fertilidade sexual podem ser os que, mais tarde, favorecem o declínio final do organismo. Como a seleção natural atua primordialmente como um juiz de sucesso reprodutivo, ela acaba relaxando a guarda para esses genes do tipo “bomba-relógio”.

O primeiro tipo de circunstâncias em que a T. nutricula rejuvenesce até que segue essa lógica. Se o organismo em questão ainda não conseguiu se reproduzir, faz sentido que ele tome medidas extremas para proteger o seu “soma” (o seu corpo, em grego, mas a palavra tem a conotação biológica precisa de “células somáticas”, ou seja, o organismo menos as suas células sexuais). Mas, quando até as medusas que já se reproduziram e estão caminhando para o fim da vida resolvem brincar de fênix, o paradoxo fica insuportável. Ainda não temos uma solução satisfatória para esse enigma.

Além das células-tronco
Seja como for, um detalhe importante da regressão à juventude operada pela água-viva talvez nos traga ainda mais descobertas surpreendentes. O que os pesquisadores descobriram é que a T. nutricula não depende apenas de células-tronco (aquelas em estado “primitivo” e não-especializado, capazes de dar origem a vários tipos de tecido) para realizar seu truque. Ao manipular cada um dos tipos celulares presentes no bicho, os biólogos notaram que são células especializadas as principais responsáveis por permitir a volta à infância.

Como? Desdiferenciação, oras – palavrinha que indica o retorno a um estudo semelhante ao de células-tronco, como se as suas células da pele de repente passassem a achar que elas ainda são células embrionárias, capazes de “fabricar” também músculos ou neurônios. Por estranho que pareça, as células-tronco da água-viva precisam da ajuda das células mais especializadas com síndrome de Peter Pan.

Embora águas-vivas sejam organismos imensamente diferentes de nós, é importante lembrar que, nesses níveis celulares e moleculares básicos, todos os animais do planeta são surpreendentemente parecidos. Neste exato momento, equipes de pesquisa do mundo inteiro, inclusive no Brasil, estão tentando várias receitas para induzir a desdiferenciação como forma de obter células-tronco geneticamente compatíveis com pessoas que necessitam, por exemplo, de uma reconstrução neuronal em sua medula espinhal, destruída por um acidente de trânsito ou uma bala perdida.

Eu seria capaz de apostar que, para entender os mecanismos básicos de como fazer isso, a T. nutricula seria uma excelente professora. E, no futuro distante, quem sabe que tipo de maravilha o conhecimento obtido com ela seria capaz de operar sobre os efeitos incapacitantes ou incômodos da velhice? É claro que esse tipo de pesquisa teria impactos sociais e éticos gigantescos, mas isso não é motivo para deixar de tentar entender essa criatura tão singular.

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