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sábado, 14 de março de 2009

Tolstói: a literatura que não é literatura

Em conflito permanente com a sua arte, Tolstói nos mostra como o nexo inevitável entre literatura e vida social pode se transformar numa vantagem artística

A ficção como experiência de pensamento
De todo modo, o que importa é que literatura e religião, no caso de Tolstói − como em muitos escritores russos −, são linguagens apontadas para uma intervenção concreta nas formas de vida presentes. E os três grandes romances de Tolstói denotam a agudeza crescente da sua visão crítica. Guerra e paz tende a mostrar uma imagem menos questionadora da nobreza russa: em face do inimigo externo − as tropas de Napoleão −, as diferenças internas ficam um pouco na sombra.

Por outro lado, os expedientes mentais usados pelos países dominantes para justificar sua agressão e sua superioridade, em relação aos russos, são postos em relevo. Anna Kariênina já examina uma sociedade em crise − conjugal, familiar, cultural e social. As classes populares aparecem como uma brecha, uma janela: ou uma fonte de ar puro e renovador para o herói nobre, ou um índice do conflito social subjacente. Já em Ressurreição, o conflito é aberto, declarado e frontal. O romance trata do mundo prisional e judiciário, no qual as classes populares são segregadas e eliminadas, sob a bênção do discurso racional e humanista da justiça, da lei e do progresso.

Todavia, seria enganoso supor um fio de progressão contínua que uniria os três grandes romances. Em Guerra e paz, há mais do que simples prenúncios de tudo aquilo que virá em Ressurreição. Observando em retrospecto, percebe-se que as mesmas questões se apresentavam a Tolstói desde o início e, no máximo, pode-se dizer que as suas hesitações diminuíram com o correr dos anos.

Mesmo no aspecto da linguagem, as inquietações do escritor levaram-no, por exemplo, a escrever, quase ao mesmo tempo, obras tão díspares como o conto O prisioneiro do Cáucaso e o romance Anna Kariênina. No conto, Tolstói experimenta uma prosa de fortíssima concisão e simplicidade, com marcante predominância do período simples e sem nenhuma digressão. Um estilo elaborado a custo e com rigor, à luz das narrativas orais populares e dos textos destinados à alfabetização de crianças camponesas − textos que o próprio Tolstói criava, junto com seus pequenos alunos. Em contraste, no romance Anna Kariênina, o autor lança mão de uma frase de arquitetura complexa, longa, desdobrada em ramificações sintáticas de grande fôlego. Qual dos dois escritores é Tolstói?

Tudo indica que Tolstói − a quem tantos acusam de doutrinário − não tinha resposta pronta e fixa para as questões que ele mesmo formulava. Em troca, não se cansava de se impor problemas, nem de arriscar respostas fortes. Em boa parte, seus romances e contos constituem experiências de pensamento, testes e hipóteses, experimentos para os quais convoca os seus leitores. As constantes hesitações e dúvidas de seus personagens dão um bom testemunho desse processo.

Isso faz mais sentido ainda se pensarmos que, num célebre comentário a Guerra e paz, Tolstói afirmou que todos os livros russos relevantes se desviavam dos modelos literários europeus.

Ou seja, os problemas estavam postos, à frente de todos, mas a forma de pensar sobre eles tendia a vir pronta dos países dominantes, não só nos modelos da arte, mas também nos modelos do próprio pensamento social. A resistência de Tolstói à arte literária caminha em paralelo à hipótese de que narrar compreende a possibilidade de criar formas específicas de pensar e de conhecer. É bem possível que por isso ele nunca tenha sido capaz de abandonar a literatura, a despeito das suas repetidas e sinceras objeções e queixas contra a arte.

Hoje, quando a literatura carece tanto de encontrar o seu caminho e de renovar o seu papel crítico no mundo contemporâneo, pode ser de grande ajuda reexaminar com olhos menos arrogantes todo o pensamento e o rico percurso de Tolstói.

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