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segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Raspar cabelos e chamar calouro de 'bicho' no trote é tradição da era medieval

Veteranos das primeiras universidades visavam 'civilizar' os calouros.
Novatos chegavam barbudos, cabeludos e analfabetos à vida universitária.
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Raspar o cabelo de um calouro e chamá-lo de “bicho” pode parecer uma parte inofensiva do “trote” nas universidades de hoje, mas remete a uma tradição de humilhação que se inicia na era medieval, afirmam pesquisadores que estudaram a história da prática.

Ninguém sabe exatamente quando ocorreu o primeiro trote, mas é certeza que foi antes mesmo de as universidades serem chamadas de “universidades”. “As universidades medievais se formaram como apêndices da Igreja, quase como departamentos da Igreja Católica”, explica Glauco Mattoso, autor do livro “O calvário dos carecas”, de 1985, que conta como surgiu o trote.

“Os padres detinham os livros e o conhecimento. Paralelo a isso, as oficinas, fora da Igreja, ensinavam coisas práticas, como alfaiataria. A união dessas duas partes deu origem aos primeiros centros universitários da Europa”, explica Mattoso.

Nessa época, o conhecimento era completamente restrito ao ambiente universitário. “Na Idade Média, todo mundo era analfabeto. Isso é antes do surgimento da imprensa, então os livros eram todos escritos à mão e muito raros. Era muito caro estudar. Quando alguém entrava em uma universidade, era um privilegiado”, explica o pesquisador.

“Os alunos que já estavam na faculdade viam o novato como um verdadeiro bicho do mato. É daí que vem a ideia de chamar calouros de 'bichos’”, conta Mattoso. “E isso não era longe da realidade. Quem chegava à universidade pela primeira vez era geralmente analfabeto e tinha longos cabelos, unhas sujas e barba comprida. Estamos na Idade Média, afinal. Os veteranos viam o novato como alguém que precisava ser literalmente civilizado”, explica.

Quando o novo aluno chegava, os veteranos cortavam sua barba e seu cabelo, e raspavam seus pelos. “A tradição de raspar os cabelos dos calouros é algo que vem dessa época, para civilizar o recém-chegado. Eles também davam banhos e faziam ritos de ‘purificação’. É aí que entra a violência”, conta o pesquisador.

Registros

Os primeiros registros de trote são encontrados em praticamente todas as primeiras universidades da Europa, como Paris, na França; Coimbra, em Portugal; e Heidelberg, na Alemanha. É em Heidelberg que são encontrados também os primeiros relatos de violência na recepção aos calouros, em um livro chamado “Manuale Scholarium”, de 1481 e autoria desconhecida. A obra era usada para ensinar latim e, como exemplos de conversação na língua, eram usados diálogos sobre a vida estudantil na universidade entre os personagens fictícios do calouro Joannes e dos veteranos Camillus e Bartoldus.

Em um dos episódios descritos, os veteranos entram no quarto do calouro fingindo nojo do “terrível fedor” do local. Procuram a causa do cheiro e encontram o calouro, “um bicho do mato, um monstro de horrendo aspecto, com enormes chifres e dentes, nariz recurvo como um bico de coruja, olhar feroz e boca ameaçadora”.

Depois de insultarem o novato, eles afirmam ter pena do “pobre bicho, que afinal é um futuro colega” e oferecem um “vinho”, que, na verdade, é apenas urina. Joannes, o calouro, se recusa a beber e é forçado. A partir daí, os veteranos decidem “curar” o “monstro” para que seja aceito na comunidade universitária. É aí que começa o “trote”.

O calouro sofre intensas agressões físicas, é forçado a se alimentar de comida com fezes e obrigado a admitir diversos “pecados”, principalmente de origem sexual. Ele fica sob o comando de um “mestre”, a quem tem que vestir, calçar, servir à mesa e até, em alguns casos, masturbar. Se o novato se rebelasse, seria espancado pelos veteranos – prática que muitas vezes levava à morte.

Se sobrevivesse, o calouro então jurava que iria repetir com os próximos novatos tudo o que lhe foi feito. Só então ele passava a ser aceito na vida universitária de Heidelberg como veterano.

No Brasil

Embora o caso tenha sido descrito na universidade alemã, Glauco Mattoso afirma que as mesmas práticas eram comuns em todas as universidades européias. E quando a universidade chegou ao Brasil, no século XIX, a prática veio com a tradição portuguesa da Universidade de Coimbra.

“As faculdades de direito de São Paulo e Olinda seguem fortemente a tradição de Coimbra e isso se refletiu também no trote. A primeira morte no trote no Brasil é exatamente em Olinda, em 1831”, diz o pesquisador. É de Coimbra também que vem a tradição nas faculdades de direito brasileiras do “trote erudito”, onde os calouros são obrigados a fazer discursos e poesias autodepreciativas de improviso.

Hoje, na maioria dos países da Europa e nos Estados Unidos, o trote praticamente desapareceu. “Nos Estados Unidos, ele existe apenas nas "fraternities", as repúblicas. Dentro da universidade, não existe”, afirma Mattoso.

A forma com que ele é feito no Brasil, com grande alvoroço de calouros e veteranos nas ruas, é praticamente desconhecida entre os próprios inventores do trote. “Há um pouco de carnavalização da coisa por aqui. Vira festa. Os europeus e os americanos são mais sisudos, então isso foi sumindo naturalmente”, explica.

E, se há uma “tradição” no trote, para o pesquisador, ela é a da violência. “As pessoas fazem muita confusão quando aparece um caso de um calouro sendo agredido. Dizem que o trote ‘está ficando’ violento. O trote sempre foi violento. A memória das pessoas é que é curta”, conclui.


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