Luciana, Carrilho e o pequeno Rafael na sala do apartamento em Jacarepaguá, no Rio. A família gasta mais porque não aguenta ficar em casa
Márcio e Luciana são um exemplo da chamada “classe média apertada”, segundo os institutos de pesquisa Mediator e Contexto Brasil. Em julho deste ano, a pedido de representantes do mercado imobiliário carioca, eles fizeram uma análise do pós- -venda de imóveis com menos de 70 metros quadrados, em condomínios fechados do Rio. O resultado é um estudo dessas famílias que, ao buscar um teto próprio e mais segurança, se deparam com uma vida de adaptações, “jeitinhos” – e muito estresse. Em O novo espaço familiar: o dia a dia nos apês compactos, os entrevistados – homens e mulheres de 22 a 55 anos, moradores de bairros como Barra da Tijuca e Jacarepaguá – enumeraram consequências da nova situação, desde procedimentos práticos até aspectos emocionais: em espaços menores, o convívio familiar se torna mais conflituoso.
“Uma das mulheres pesquisadas, mãe de três filhos, inventou uma rotina em que só ia para a cama às 2 da manhã, para poder ter seu momento a sós, ler ou ver televisão em paz”, afirma Andréa Martins, diretora da Mediator. Nos relatos da pesquisa, a grande maioria dos membros da família disse que as brigas haviam aumentado depois da mudança – em especial nos grupos em que há adolescentes. A psicóloga Adriana Wagner, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e autora de Família em cena: tramas, dramas e transformações, diz que o espaço menor de convivência aumenta a necessidade de negociação das famílias. “Qualquer grupo precisa da delimitação de fronteiras nítidas, sejam físicas, sejam emocionais: o que é do casal, o que é das crianças, o que é só do pai ou da mãe”, diz. Ela afirma, porém, que, embora possa agravar os conflitos, o imóvel apertado não é o causador original do desequilíbrio familiar. “Esse existe num lar de qualquer tamanho, quando não se respeita a fronteira do outro.” Adriana acredita que o fato de não haver muito espaço pode, inclusive, contribuir para um aprendizado de respeito com o que é do outro. “Se não houver diálogo, todos saem perdendo. A saída é conversar.”
O militar Leonardo Estevão da Silva, de 32 anos, passou do apartamento espaçoso em que morava com a mãe para um espaço de 68 metros quadrados em Irajá, num condomínio de classe média. Ele mora com a mulher, Ana Paula, e a filha, Ana Luísa, de 2 anos, e descreve seu lar: “A cozinha é um corredor, a sala é apertada, o banheiro é minúsculo”. Alguns sonhos de consumo precisaram ser adiados, como a televisão de LCD. Não há distância suficiente da parede até o sofá. Mesmo a TV comum eles veem de lado. O pior é não poder trocar de roupa no banheiro. Com a falta de espaço, é preciso ir de toalha para o quarto. “Se houver gente de fora na casa, tem de dar uma corrida”, diz Ana Paula. Mas “gente de fora” é o que menos há nos apartamentos dessas famílias. Um dos resultados do aperto apontado na pesquisa foi a perda da sociabilidade. Nada de reuniões de famílias ou amigos. “Os adolescentes reclamam que não podem convidar os amigos. Mas, na verdade, não há como colocar mais gente num espaço que já é todo esquematizado, dividido em horários”, diz Maria Nazareth Barcellos, do Instituto Contexto Brasil. “A mãe usa a sala na hora da novela enquanto o filho espera para poder jogar videogame. Nos quartos não há como pôr televisão.”
A criatividade em criar outras formas de organização chamou a atenção dos pesquisadores. Muitas coisas ficam embaixo da cama ou em tetos falsos. Os porta-malas dos carros também viram depósitos de álbuns de fotografias, instrumentos musicais, brinquedos maiores e até edredons e roupas de inverno, quando chega o verão. Atrás das vagas, nos estacionamentos, é comum haver bicicletas ou pranchas de surfe. Alguns condomínios já fizeram armários coletivos para os moradores.
Pai de um menino de 7 anos, o comerciante Walter Santos, de 37, mudou-se do aluguel da Zona Norte para a Barra da Tijuca em busca de “uma nova vida”. O condomínio fechado, perto da praia, com área de lazer, era o que sua família sempre quis. No dia da mudança, depois de o caminhão entregar tudo que tinham, simplesmente não conseguiram entrar no apartamento. Resultado: passaram uma semana na casa da sogra pensando o que fariam com boa parte do que tinham. Foram obrigados a se livrar de móveis, enfeites e eletroeletrônicos. “Aos poucos vamos nos adaptando, mas passo os fins de semana na casa dos outros ou passeando. Em casa, meu filho fica mais agitado que de costume. Parece um bichinho enjaulado”, diz Santos. O pior mesmo, para ele, é a falta de privacidade. “Todas as noites, por volta de 11 e meia, tenho de cheirar o jantar de meu vizinho, que chega tarde. E muitas vezes saio de manhã com os ruídos do casal ao lado fazendo sexo.”
Essas famílias não são exceções. Ao contrário. Esse tipo de imóvel compacto é a grande febre da classe média nas cidades grandes. Além do Rio, onde foi feita a pesquisa, também em São Paulo há oferta cada vez maior dos apartamentos compactos. De acordo com Odair Senra, presidente do Sindicato das Construtoras de São Paulo, dois motivos contribuem para isso: o pouco espaço disponível para construção, que levou à racionalização, e a demanda da casa própria pela nova classe média. “Para baratear o imóvel e tornar o sonho possível, jogaram na mão do arquiteto a missão de reduzir os tamanhos”, diz. Multiplicam-se os apartamentos de 70 metros quadrados. Mas há também os menores, de 40 metros e 50 metros quadrados. Segundo um estudo do Núcleo de Estudos sobre Habitação, da Universidade de São Paulo (USP), na década de 70 a média de um apartamento de dois quartos era de 85 metros quadrados. Em 2000, já era de 65.
Quando se mudaram, recém-casados, para o apartamento de 49 metros quadrados em que vivem hoje, em São Bernardo do Campo, o técnico em informática Michel Capelli, de 35 anos, e a mulher, a veterinária Gabriela, de 26, tiveram de se desfazer de boa parte do que tinham e mobiliar a casa com poucos e pequenos móveis, além de eletrodomésticos compactos. Antes do casamento, ela morava com os pais numa ampla casa de três quartos, com jardim e churrasqueira no quintal, no ABC paulista. Ele vivia com a família em um sobrado espaçoso de dois andares na Zona Leste de São Paulo. “No dia em que nos mudamos, peguei a mangueira para lavar as janelas”, conta Gabriela, revelando o costume típico de moradores de casas. “Em dois minutos o interfone tocou com uma pessoa reclamando que a água estava inundando a casa dela.”
Capelli, Gabriela e a cadela Charlene no apartamento de São Bernardo. Os vizinhos parecem perto demais
O corintiano Michel ainda se espanta com a proximidade dos vizinhos. “Às vezes, eu abro a janela e dou de cara com o chileno palmeirense do bloco ao lado, deitado na cama de cueca, com o laptop no colo”, afirma. “Eu sei até o horário em que o cidadão do apartamento de cima vai assoar o nariz”, diz Gabriela. O casal só não conseguiu se livrar de um costume: cachorro em casa. Charlene, uma vira-lata de 2 anos e 13 quilos, é a terceira moradora do cubículo. “Era provisório, porque não tínhamos onde deixá-la, mas acabou ficando”, afirma Gabriela. Prova de que há jeito para tudo.
O presidente da Imobiliária Patrimóvel, Rubem Vasconcelo, diz que a multiplicação dos apartamentos compactos é um caminho sem volta. E, com o crescimento da classe média, será uma tendência ainda mais forte. “O brasileiro é um povo ligado à propriedade, à família. Todos querem um lar para chamar de seu.” Ele diz que o tamanho dos imóveis está diminuindo. De 70 e 60 metros quadrados, antes, agora há demanda por 40 a 50 metros quadrados. “O mercado não inventa, ele se adapta ao que o consumidor quer”, afirma. “E o consumidor quer o que cabe no bolso.”
A classe média apertada Perdas e ganhos das famílias em apartamentos de até 70 metros2 |
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Fonte: Pesquisa Instituto Mediator/Instituto Contexto Brasil |
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