A primeira vez que ouvi falar algo sobre Mzima foi quando encontrei o casal Vicky e Mark, em 2001. Estávamos no Festival de Filmes de Vida Selvagem de Jackson Hole, nos EUA, e eles lançavam “Mzima, a Caverna do Cavalo das Águas”.
Fiquei fascinado pelas imagens submarinas que o casal havia conseguido nos lagos formados pela nascente Mzima. Eles gravaram imagens inéditas de hipopótamos embaixo d’água e de ferozes crocodilos lutando pela sobrevivência. A sequencia mais extraordinária era a da morte de um pequeno bebê hipopótamo, que tirou lágrimas de todos os espectadores. (A foto acima, de Vicky Stone, vem do filme e mostra o bebê hipopótamo vítima do infanticídio). O filme ganhou o mais importante prêmio do festival naquele ano – bem merecido.
Quatro anos depois, em 2005, encontrei novamente o casal de quenianos brancos. Eles apresentavam outro documentário, “A Rainha das Árvores”. Era a história poética de uma figueira e de um maribondo, seu polinizador, cujas vidas estavam interligadas. Eles explicavam, com belas imagens e narração, como todos os seres da natureza estão conectados, do elefante à formiga – aliás, ambos clientes dos frutos da mesma figueira. Depois da projeção, conversei bastante com Vicky e os nomes Mzima e Tsavo ficaram gravados na minha mente para sempre.
Por isso, quando discutia o safári com Fred em Nairobi (poucos dias antes de dar início a essa jornada), fiz questão de incluir o parque Tsavo no itinerário. Para mim, o Tsavo e a fonte Mzima eram lugares míticos, descobertos graças a Vicky e Mark, que eu precisava agora conhecer pessoalmente.
As piscinas naturais de Mzima, um oásis em plena savana, foram para mim uma fonte de inspiração e razão principal de conhecer o parque Tsavo.
Essa é minha última manhã no Quênia. Amanhã acordarei em um aeroporto na Europa. Essas últimas horas precisam ser vividas com um doce sabor de despedida e saudades antecipadas. Fred prefere conversar com amigos no estacionamento e vou, sozinho, direto à fonte de água, seguindo uma trilha. Fico fascinado com a quantidade de líquido que brota da terra: são mais de 10 milhões de litros por hora, quase 30 litros por segundo. Grande parte é desviada para abastecer a segunda cidade do país, Mombasa.
As duas piscinas naturais formadas pela água cristalina servem de berçário para alguns grupos de hipopótamos. No primeiro lago, os animais estão congregados na outra margem e contra o sol. Nem tento fotografar. Prefiro correr atrás dos macacos Vervet que vivem às margens do lago. Principalmente dos machos. Eles possuem uma característica singular de dar inveja a muitos. Seus sacos são azul turquesa. Quanto mais alto o ranking no grupo, mais forte é a pigmentação das bolsas que guardam os testículos. Um macaco sem moral, rejeitado ou deprimido possui um saco cinza e não azul turquesa.
Os macacos Vervet machos possuem uma característica particular: os testículos dos machos dominantes são azul turquesa.
Os administradores de Tsavo pensaram que seria uma boa ideia construir um pequeno mirante embaixo d’água, principalmente para observar o comportamento submarino dos hipopótamos. Mas os “cavalos das águas” não gostaram da invasão de intimidade e, uma vez o observatório construído, os hipos passaram a evitar o local. Hoje os únicos visitantes são tilápias obsecadas, que não param de dar voltas ao redor do mirante circular.
Dezenas de tilápias passam o dia dão voltas ao redor do pequeno observatório submarino.
Desço a trilha e chego à segunda piscina. Dessa vez acerto em cheio. Iluminados pelo sol e a menos de 10 metros de distância, 18 hipopótamos adultos e juvenis estão agrupados. O lago é tão claro que consigo ver bem os animais embaixo d’água. Todos têm a pele meio rosada. O pigmento é criado por uma secreção e serve de proteção da pele contra os efeitos dos raios solares e para eliminar bactérias.
Tenho os hipos somente para mim e me delicio com as fotos. Mas quase todos estão adormecidos, vários de olhinhos fechados. Nenhum deles se move muito. A água é apenas perturbada por alguns peidos. Em outras palavras, depois de 10 minutos, começo a fotografar a mesma cena.
O hipopótamo é um animal semi-aquático. Hipos e baleias tiveram um ancestral comum há 60 milhões de anos.
Dou uma olhada ao meu redor e não há ninguém por perto. Olho para o chão e encontro uma frutinha redonda, do tamanho de uma bola de gude. Uma tentação passa pela mente. Será que se eu jogar essa bolinha nos hipopótamos eles vão acordar e mudar de posição, para ter uma foto diferente? Tenho pleno conhecimento que eu estaria quebrando vários códigos de ética, pois é extremamente proibido perturbar qualquer animal selvagem, em qualquer parque nacional, em qualquer país do mundo.
Minha consciência ambiental debate com meu instinto fotográfico. Quem ganha é minha alma de moleque: decido que uma bolinha não vai machucar ninguém. Principalmente aqueles bichos encouraçados. Quando levo o braço para trás para tomar impulso, começo a ouvir vozes – reais, não na minha mente. Interrompo o movimento bruscamente e dou aquela disfarçada terrível: começo a coçar a cabeça. Só falta assobiar e olhar para o céu… Que vexame! Será que as pessoas notaram que eu ia jogar a frutinha nos hipopótamos? Fico com tanta vergonha que não tenho coragem de olhar para trás.
Apesar de ser considerado o animal mais perigoso da África, o hipopótamo, quando está dentro d’água, parece ser um bicho doce e pacífico.
As vozes se aproximam e consigo identificar as de um casal. São brancos, mas não são turistas. Um africano está com eles. Discutem sobre equipamentos aquáticos, câmeras especiais e crocodilos. Minha audição se aguça para captar mais informação, mas prefiro continuar de costas, morrendo de vergonha. Talvez a melhor solução seja sair de fininho, como um caranguejo andando de lado.
O diálogo continua com uma linguagem cada vez mais conhecida. Minha curiosidade alimenta minha ousadia e me resolvo encarar. Me viro e quem vejo? Vicky e Mark – o casal de cinegrafistas que havia inspirado minha vinda ao parque! Nos reconhecemos imediatamente e não podemos acreditar na coincidência. “Pensei tanto em vocês nesses dias”, digo. “Eu vim aqui à Tsavo e à Mzima só por causa de seus filmes.” Todos se emocionam, nos abraçamos e decidimos tirar uma foto para registrar o encontro. Vicky prepara a cena e nos coloca à sombra de uma enorme árvore – aquela da frutinha que eu iria jogar. Ela olha para cima e diz “Haroldo, essa árvore foi a personagem principal daquele filme que você gostou tanto. É a Rainha das Árvores”. E eu querendo jogar os frutos da rainha em cima dos hipopótamos…
O encontro inesperado entre Vicky Stone, Mark Deeble e eu, sob a sombra da figueira, figura principal do documentário “A Rainha das Árvores”.
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