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quinta-feira, 2 de abril de 2009

Use o Auto-Tune, e vire uma estrela

Com um software de afinação de voz, qualquer um – qualquer um – pode ser cantor
Caio Guatelli
O CÃO-TOR
O border collie Garrincha no banquinho de um estúdio: até seus uivos, no afinador automático, viram solos inspirados

Apesar do coro de descontentes, “tunar” artistas no estúdio tornou-se prática quase inevitável. A maioria das músicas contemporâneas é finalizada no Pro Tools, um programa que permite a engenheiros e músicos visualizar o áudio na tela do computador e mapear as canções numa espécie de tabela do Excel. É possível montar uma música como quem brinca com tesoura e cola – método com o qual se escreveu boa parte da história recente do pop. O Auto-Tune e o Melodyne são aplicativos do Pro Tools, incrementos para tornar o processo de edição perfeito. Para muitos diretores de gravadoras, uma melhora indispensável. “Se a gente pode entregar um áudio de melhor qualidade para o consumidor, por que não usar a tecnologia?”, diz Marcelo Toller, diretor-artístico da Som Livre.“Esses equipamentos vieram para melhorar o áudio, corrigir problemas e fazer ajustes, pequenos ou grandes, em takes que têm emoção, mas em outros tempos ou seriam jogados fora ou eternizados com esses defeitos.”

Na qualidade inerente do Auto-Tune reside, justamente, seu perigo: a superdosagem. É como uma aspirina musical para resolver pequenas dores de cabeça depois da gravação. “É um remédio que todo mundo toma”, afirma o produtor Rick Bonadio, que já pôs a mão em gravações de inúmeros roqueiros brasileiros, de Titãs a NX Zero. “O problema são os efeitos colaterais quando você exagera.” Para limpar o organismo musical de excessos de tunagem, Bonadio avia uma receita: “Enquanto não ficar incrível tem de refazer. Depois que a versão gravada arrepiar, é válido usar o Auto-Tune para dar pequenos retoques”.

Boa parte dos artistas nacionais compartilha da opinião “moderada” de Bonadio. “Já usei o Auto-Tune para fazer ajustes finos, reparos para não perder a intensidade de uma gravação que ficou muito boa”, afirma Mônica Salmaso. Como todo instrumento tecnológico, é difícil ter sabedoria para não sair apertando todos os botões e usar os milhares de recursos. Muitos produtores, engenheiros e músicos estão viciados em Auto-Tune. “Certa vez precisei brecar um técnico que editou a minha voz automaticamente, colocando-a no mesmo tempo que a do meu parceiro na canção”, diz Mônica.

Rodrigo Paiva
USE, MAS COM MODERAÇÃO
Rick Bonadio em seu estúdio em São Paulo. Para evitar a overdose de afinação automática, o jeito é gravar, regravar, re-regravar...

Esse grau de aperfeiçoamento transformou os afinadores de voz em parte essencial do processo de gravação. Como tudo que facilita a vida, o programa incentivou certa preguiça artística. “Não devia virar praxe, pois tem gente que grava e vai embora, deixa na mão do produtor ou do técnico”, afirma a cantora Fernanda Porto. É como se a existência do recurso desobrigasse cantores de se esforçar para melhorar uma gravação. “Hoje, 90% dos artistas entram no estúdio pensando no Auto-Tune, e não em fazer um take de voz maravilhoso”, diz o engenheiro de som Luiz Paulo Serafim, que mixou de Roberto Carlos a Maria Bethânia. “O cara canta pensando que alguém vai consertar depois.”

A metáfora futebolística de Bôscoli, da Trama, reverbera melhor: “É como se uma empresa inventasse uma chuteira que ajusta automaticamente o chute e o passe. Qualquer chute entra no ângulo, qualquer toque sai perfeito. Que jogador iria querer treinar?”.

A potência desses Photoshops sonoros levou um renomado produtor a afirmar: “Com esse programa, até cachorro canta”. ÉPOCA fez o teste. Levamos o cão Garrincha, gentilmente cedido pela escola de adestramento Cães Maravilhosos, a um estúdio em São Paulo. Seus uivos foram gravados, mixados no Auto-Tune e transformados em canção. Ficaram ótimos. Você não precisa acreditar em minha palavra, pode conferir a musicalidade do cãozinho tunado no site de ÉPOCA. Também é possível ouvir trechos de canções em que o programa foi aplicado. No uso criativo, sua presença é evidente e interessante. Como Botox de gravações, é quase imperceptível. “O uso é tão milimétrico que nem com muito esforço o ouvido não profissional percebe”, diz Rick Bonadio. Então como saber se alguém canta mesmo? “Só ao vivo dá para analisar. No estúdio se fazem milagres, no palco não dá para enganar”, diz Marco Mazzola, ecoando a opinião de Maria Rita. “O público não é burro: ele pode pegar na mão um disco impecável e no show ver que o artista não vinga.”

Uma vez perguntaram a Andy Hildebrand se sua invenção era nociva. Ele respondeu: “Bem, minha mulher usa maquiagem. Isso é nocivo?”. Para esconder rugas, não. Mas, mesmo com a notória indulgência dos tímpanos populares à ética e à estética sonora de certos artistas, é preciso questionar os limites do uso desses afinadores como procedimento padrão dos estúdios para “dar um tapa” nas vozes. Se qualquer um pode cantar, o que faz do artista um artista?

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