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sábado, 18 de julho de 2009

Mundos perdidos

Esta coluna é um réquiem – um pequeno lembrete do nosso potencial como assassinos planetários. Os últimos monstros pré-históricos da Terra ainda estavam conosco menos de mil anos atrás. Eles não foram destruídos por meteoritos ou tsunamis, mas com lanças, tacapes e queimadas. Esta é a história de como as ilhas do planeta foram despojadas de seus habitantes mais emblemáticos pelos primeiros humanos que lá puseram os pés.

Imagine que as multidões de britânicos que adoram passar o verão nas ilhas gregas tivessem, como opção adicional de passeio, uma cavalgada em elefantinhos adultos de apenas 1,5 m de altura – literalmente pôneis de tromba. Ou que os gorilas fossem destronados de sua posição como maiores primatas do mundo por um plácido lêmure de 200 kg. Ou, ainda, quem não abraçaria a chance de se deliciar com um omelete para 20 pessoas, preparado com a única gema de um ovo do tamanho de uma bola de futebol? Foram essas e outras maravilhas que a hecatombe insular provocada pelo homem negou às gerações que viriam.

Delicada diversidade
Antes de continuar o réquiem, porém, talvez seja interessante esclarecer uma questão mais básica: por que as ilhas, e em especial ilhas oceânicas relativamente remotas, como as duas que compõem a Nova Zelândia, Madagáscar, Tasmânia? Acontece que um conjunto bastante regular de fatores conspira para que esse tipo de ambiente insular se transforme num viveiro de espécies únicas e relativamente mais frágeis do que as que existem em continentes.

O primeiro ponto importante é óbvio: o isolamento. Separe qualquer subpopulação de animais ou plantas de seus parentes com a ajuda de uma barreira muito difícil de atravessar, como o oceano, e o lento acúmulo de variações e erros no DNA do grupo isolado, junto com o fato de que ele não mais troca material genético com seus companheiros continentais, acabará fazendo com que ele se torne mais e mais peculiar e divergente – desde que haja tempo necessário para isso, é claro.

Outro ingrediente da receita: permeabilidade seletiva da barreira oceânica. É, eu sei que parece um palavrão, mas a coisa é, no fundo, muito simples. Como é muito complicado atravessar longas distâncias entre o continente e o mar, é apenas graças a raros golpes de sorte que um ou outro animal ou planta cruza as ondas e consegue fundar uma população nas terras de além-mar.

Alguns bichos fazem isso melhor do que outros: anfíbios, por exemplo, têm dificuldade notória para sobreviver à água salgada, por causa de sua pele delicada. Mamíferos aguentam relativamente pouco tempo sem beber água doce. Aves voam – daí a predominância de bichos emplumados na fauna de ilhas oceânicas. De qualquer maneira, uma vez que os primeiros “colonizadores” tenham chegado, é bem mais difícil que outras “fundações” aconteçam – o normal é que os descendentes dos primeiros a aportar ocupem o novo ambiente.

A consequência natural da situação descrita acima é que as “novidades” evolutivas que aparecem no continente tenham pouco ou nenhum impacto sobre as espécies das ilhas enquanto o isolamento delas durar. O exemplo mais gritante é o dos lêmures de Madagáscar: enquanto o continente africano, adjacente à ilha, ficou repleto de macacos de todas as formas e tamanhos a partir de uns 30 milhões de anos atrás, o lugar continuou sob o reinado absoluto dos lêmures, descendentes de uma linhagem mais antiga de primatas que tinha chegado às terras malgaxes dezenas de milhões de anos antes.

Tomando conta
Mais importante ainda, a falta de concorrência “do exterior” faz com que as poucas linhagens que conseguiram cruzar os mares acabem evoluindo para ocupar nichos ecológicos – grosso modo, “estilos de vida” ambientais, como o de carnívoro, pastador, comedor de frutas, devorador de insetos etc. – que ficariam a cargo de criaturas totalmente diferentes no continente.

Na Nova Zelândia, na ausência de mamíferos terrestres nativos, uma única linhagem de aves, os moas, ocupou os nichos ecológicos que seriam de coelhos, cervos e até hipopótamos e rinocerontes em lugares mais “normais”. (Não é preciso pensar muito em quem era o rinoceronte do local: ninguém ganhava do Dinornis giganteus, com 3,5 m e 150 kg.) Voltando a Madagáscar, todas as 16 espécies extintas de lêmures da ilha são maiores que qualquer espécie ainda viva – o que já um sinal de adaptações diferentes das dos bichos atuais – e apresentam anatomia completamente amalucada, em alguns casos. O maior de todos, conhecido como Archaeoindris, parece ter passado grande parte do tempo no chão, e não nas árvores, com seus cerca de 200 kg; outros tinham esqueletos que mais parecem o de um coala (como o Megaladapis, com até 80 kg, que aparece na abertura desta coluna numa reconstrução antigona) ou o de um bicho-preguiça – obviamente animais que nunca existiram na ilha.

E coisas ainda mais esquisitas podem acontecer com animais que vão parar em ambientes insulares. A relativa falta de inimigos naturais faz muitas aves perderem a capacidade de voo. Pelo mesmo motivo, é comum o cérebro e os órgãos dos sentidos encolherem. A falta de ambientes amplos e recursos pode fazer com que as espécies mais grandalhonas encolham – é o fenômeno do nanismo insular, que pegou de jeito os elefantes que chegaram às ilhas gregas do mar Egeu, à Sicília, à ilha de Malta e outros pedacinhos de terra salpicados Mediterrâneo afora. (Alguns desses elefantinhos não passavam de 1 m de altura quando adultos.) E, por mais bizarro que pareça, também ocorre o gigantismo insular – a resposta biológica de alguns tipos de animal ao isolamento protegido é crescer demais, e não de menos, como o célebre Aepyornis maximus de Madagáscar, com 450 kg e ovos do tamanho de uma bola oficial da Fifa. (Confira ao lado uma reconstrução do bicho ao lado da silhueta de uma pessoa.)

Serial killers
O triste aqui é que essas mesmas características, capazes de transformar a fauna das ilhas no zoológico mais assombroso da Terra, também a deixou particularmente vulnerável diante dos primeiros caçadores da nossa espécie. É bom lembrar que todos esses bichos evoluíram longe da pressão de caça dos seres humanos, uma vez que a capacidade de navegar é muito recente na nossa espécie, datando, no máximo, de uns 50 mil anos, quando a Austrália foi colonizada pela primeira vez, certamente com a ajuda de barcos. É bastante provável, por isso mesmo, que essas criaturas não temessem as pessoas e fossem presas relativamente fáceis e lerdas, abatidas com meros porretes.

O registro arqueológico da chegada dos seres humanos às ilhas oceânicas equivale a seguir o rastro de serial killers num episódio de “CSI”. A correlação entre extinções e a presença humana é muito próxima, e às vezes muito recente. Nenhum elefante nanico (e, aliás, nem os hipopótamos nanicos da ilha de Chipre) sobreviveram à chegada dos primeiros habitantes das ilhas do Mediterrâneo, a partir de uns 10 mil anos atrás. Acredita-se que as grandes aberturas redondas nos crânios de elefantes tenham inspirado, milênios depois, ao mito dos ciclopes, supostos habitantes antigos da Sicília.

Em Madagáscar, “descoberta” por volta do ano 300 da Era Cristã por navegantes da Indonésia, as aves e lêmures gigantes foram desaparecendo um a um. As últimas datas de carbono-14 de alguns desses bichos ficam em torno do século XVI, o que significa que, se Vasco da Gama tivesse parado na ilha durante sua jornada rumo à Índia, talvez pudesse ter visto os derradeiros exemplares. O A. maximus e seus ovos descomunais só sobreviveriam na lenda árabe do pássaro-roca, que carregava elefantes em suas garras para os filhotes, provavelmente criada por mercadores muçulmanos que passavam por Madagáscar na Idade Média.

De longe o caso mais bem documentado de extinção insular é a dos moas na Nova Zelândia. Os maoris, polinésios que primeiro chegaram ao arquipélago por volta do ano 1000 de nossa era, deixaram para trás a sujeira de inúmeros churrascos das enormes aves – em geral, só as coxas eram comidas, enquanto o resto do bicho era descartado. A abundância de presas e a facilidade da captura encorajavam o desperdício, tanto entre os maoris quanto entre outros povos recém-chegados a ilhas. E técnicas agrícolas envolvendo queimadas, como a tradicional coivara brasileira, destruam habitat, alimento e, às vezes, populações inteiras. Animais grandes são notoriamente lerdos para se reproduzir, sejam eles mamíferos ou aves. O resultado, previsível, era a extinção.

Para sempre
Algumas das pessoas mais cínicas que conheci já chegaram a me perguntar por que, afinal, nossa espécie deveria se importar com tudo isso. No frigir dos ovos, não somos apenas os agentes da boa e velha seleção natural? Nós apenas limpamos a Terra de espécies incapazes de adaptar, certo?

Não sei o que esse tipo de gente tem na cabeça (embora eu certamente seja capaz de dizer o que eles têm no peito, e é de pedra). A taxa de extinção causada pela ação humana nos últimos milênios é obscena, muito acima do que o registro fóssil sugere ser o natural. Nossa capacidade tecnológica (recuso-me a dizer “inteligência” nesse caso) mudou as regras do jogo. Se você entra em campo com uma bazuca na mão além da chuteira, como é que pode ter a cara de pau de dizer que a goleada foi merecida?

No fundo, apesar de tudo o que sabemos sobre a importância de uma biodiversidade robusta para a saúde da Terra, a questão a responder é mais básica. É mais visceral, porque apela para o nosso senso de integridade, de estética e de ética. Um mundo com meia dúzia de nanoelefantes ou de moas é incalculavelmente mais rico do que um mundo sem eles. A Terra está menos maravilhosa e mais pobre por nossa causa. Que não se repita.

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