
Quem vê o gerente de orçamentos Márcio Araújo imerso em planilhas não imagina seu passado no grupo que, após a sua saída, daria origem aos Mamonas Assassinas
Eram 6h30 em Guarulhos quando a porta do quarto se abriu e Márcio, ainda no escuro, pôde ouvir a voz de seu pai:
– Aconteceu um acidente com o avião dos meninos.
José Araújo havia acordado quase uma hora antes. Montador de esquadrias de alumínio, ele tinha o hábito de chegar cedo aos canteiros de obra e, em razão disso, raramente se demorava na cama. Era o oposto do filho, jovem notívago, para quem 6h30 era cedo demais para acordar em um domingo, cedo demais para encarar o dia, cedo demais para traduzir, de supetão, aquelas palavras.
– Meninos? Que meninos, pai? – o rapaz perguntou, esforçando-se para se desvencilhar do travesseiro.
– Os meninos, Márcio. Os meninos da banda.
O sono desapareceu imediatamente.
Márcio correu para a sala e grudou os olhos na TV. Sua mãe, Marcolina, acompanhava o noticiário. Naquele momento, eram exibidas as primeiras imagens aéreas da Serra da Cantareira. Equipes de resgate cercavam a área à procura do jatinho Learjet que, segundo a reportagem, decolara em Brasília às 22h rumo ao aeroporto de Guarulhos e teria se chocado com o solo pouco depois das 23h. Naquela manhã de 3 de março de 1996, Márcio não acreditou quando as câmeras focaram os escombros da fuselagem. Sete meses após o lançamento do único CD, que venderia 2,3 milhões de cópias, o grupo Mamonas Assassinas encerrou a vertiginosa carreira de forma trágica. Os “meninos da banda” estavam mortos.
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– Caramba, eu poderia estar nesse voo – foi a reação de Márcio, então um engenheiro de 24 anos que trabalhava na filial paulistana da Líder, incorporadora com sede em Belo Horizonte.
Hoje, passados 13 anos, Márcio Cardoso de Araújo é gerente de orçamentos de uma das maiores incorporadoras do país. Quem o vê, de terno e gravata, imerso em cálculos e planilhas, discutindo preços com fornecedores com o rigor de um executivo ponderado, não imagina estar diante de um tecladista que, no início dos anos 90, partilhava solos e compassos com os irreverentes integrantes dos Mamonas Assassinas – quando eles ainda formavam a banda Utopia e não tinham descoberto o fascinante mundo do besteirol.
Instalado no terceiro andar de um escritório no Morumbi, aos 37 anos, Márcio lembra o acidente na Cantareira como quem confere a fisionomia de velhos amigos em um álbum de retratos. “Fiquei mal quando eles morreram. Chorei muito naquele dia”, diz. O pessoal de Guarulhos, que conhecia as origens do grupo e havia acompanhado de perto a ascensão profissional da banda, o cumprimentava no velório com a gravidade de quem se dirige a um sobrevivente.
– Puxa, Márcio, só sobrou você... – os mais próximos chegaram a comentar.

Em sentido horário, os Mamonas, quando ainda se chamavam Utopia: Márcio (à dir., segurando a bateria), Samuel e Sérgio Reoli, Dinho, Bento Hinoto e Júlio Rasec
Márcio tinha 18 anos quando foi convidado pelo amigo Sérgio Reoli, que namorava uma vizinha sua, a entrar na Utopia, típica banda de garagem formada no ano anterior. Sérgio era o baterista, e seu irmão, Samuel, o baixista. Completavam o quarteto o guitarrista Alberto Hinoto, que mais tarde adotaria o nome artístico de Bento, e o vocalista Dinho Alves, que havia entrado para o grupo semanas antes, após dar uma canja em um show no Parque Cecap (conjunto habitacional de Guarulhos). Sérgio sabia que Márcio tocava teclado e se entusiasmou com a possibilidade de transformar o grupo em um quinteto. Logo depois, Júlio Rasec, fiel escudeiro de Dinho, seria incorporado para fazer vocais em inglês, auxiliar o titular do microfone na pronúncia americana, quebrar um galho como percussionista e colocar em prática sua experiência como técnico em eletrônica para consertar fios e cabos quando necessário.
Os seis amigos se reuniam nos fins de semana na casa de Sérgio e Samuel. Quando não havia ensaio, se encontravam do mesmo jeito, para jogar fliperama, comer pizza ou varar a noite em torneios de videogame. “O Samuel era viciado. Ele e o irmão chegaram a montar uma locadora na sala da casa deles”, diz Márcio. “Nossa convivência era muito intensa.” O repertório mesclava Ira! com Legião Urbana, Rush com Red Hot Chili Peppers, e tragava o que havia de pior e de melhor no rock dos anos 80, com Titãs, Paralamas, Barão, Ultraje, entre outros. Em 1991, o grupo já se apresentava em diversos endereços de Guarulhos e de São Paulo e seus integrantes suavam a camisa para acomodar a bateria no Fusca de Sérgio. “Eles animavam as festas juninas e viraram atração permanente no clube do Parque Cecap”, diz Audrey Pacaterra, gerente administrativa da Secretaria de Cultura de Guarulhos e moradora do bairro até hoje. Fã de primeira hora e amiga do sexteto, ela editou o primeiro fanzine dedicado à Utopia. “Eu os ajudava a customizar as roupas, rasgar e bordar as calças daquele jeito que aparece no disco”, afirma, referindo-se ao único vinil gravado pela banda, de 1992.

Márcio, que jamais aposentou o teclado, toca na companhia dos filhos, João Pedro, de 6 anos, e Luísa Maria, de 2, na sala de casa, em Guarulhos
Entre a vida louca dos bares e a prontidão que a engenharia exigia, Márcio escolheu a segunda opção. Passou a faltar nos ensaios de sábado quando havia aulas na faculdade e nas viagens em dias úteis. Pelo mesmo motivo, não chegou a gravar nenhuma das faixas do disco da Utopia, embora apareça na fotografia da capa. “Eles foram ao estúdio num sábado em que tive prova. O pior é que levei bomba do mesmo jeito”, diz ele, bem-humorado. Márcio tocava por hobby, e não para fazer da música sua profissão – o que se tornou o sonho de seus parceiros a partir de 1992. “Um dia, eles me chamaram para conversar. Eu não tinha condição de fazer tanto ensaio, e eles precisavam de um tecladista que pudesse se dedicar integralmente à banda”, afirma. O jeito foi deixar a vaga para Júlio, amigo de Dinho que tocava triângulo e pandeiro em algumas faixas. “Ele aprendeu um pouco de teclado e me substituiu.”
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O inferno virou céu. No curto intervalo entre o lançamento do disco e a queda do avião, Márcio viu apenas uma vez um integrante do grupo, num dia em que foi visitar os irmãos Reoli e encontrou apenas Samuel em casa, rendido por uma gripe. Só foi revê-los no velório. Quando morreram, Júlio tinha 28 anos, Sérgio, 26, Bento, 25, Dinho, 24, e Samuel, 22. Recentemente, Márcio foi procurado pelo cinegrafista Cláudio Kahns para gravar um depoimento para o documentário Mamonas Doc, que deve estrear em junho. Raríssimas são as pessoas que, ao lembrar a trajetória dos Mamonas Assassinas, mencionam o sexto integrante da Utopia – ainda que Marcio tenha passado mais tempo com a banda do que ela durou sem ele. Casado com a professora Gisele, Márcio é pai de João Pedro, de 6 anos, e Luísa Maria, de 2. Mora em um sobrado de classe média em Guarulhos, a 30 metros da casa de Seu Ito e Dona Nena, pais de Sérgio e Samuel – a mesma casa onde, há quase 20 anos, ensaiava e jogava videogame com os amigos. Por paixão à música, Márcio jamais aposentou o teclado. Desde que saiu da Utopia, acompanhou uma cantora de música sertaneja, teve outras bandas de pop-rock, tocou em bares e em praças de alimentação de shoppings, fez festas e bailes de formatura e, há mais de um ano, toca rock dos anos 60 e 70 em uma banda chamada Friends. Em julho, aliás, seus integrantes receberão convidados especiais para um show em tributo aos Mamonas Assassinas a ser realizado em Jundiaí. O quase Mamona vai estar lá.

“ O NOSSO WORK É PLAYAR ”
Toda a carreira dos Mamonas Assassinas durou só oito meses: do lançamento do único cd, em julho de 1995, ao acidente com o Learjet, em março de 1996. Parece pouco tempo. E foi. Quem acompanhou a trajetória da banda é capaz de jurar que ela existiu por mais de dois anos. Foi tanta escatologia, tantas gargalhadas provocadas por cinco rapazes vestidos de Chapolin e tantos hits executados nas rádios, que o tempo parece ter esticado para acomodar tamanha alegria. O documentário Mamonas Doc, dirigido por Cláudio Kahns, ajuda a entender o segredo: eles não paravam um segundo e provocavam-se como se estivessem no centro de uma guerra de mamonas. Com pré-estreia agendada para 6 de junho no Ginásio Thomeuzão, em Guarulhos, o filme, de uma hora e meia, é quase todo costurado a partir de imagens captadas pelos próprios músicos nos bastidores de shows, turnês e gravações. Ali, as cenas funcionam não só como tributo e registro biográfico da banda, mas principalmente como um passaporte despretensioso que nos permite invadir sua privacidade e revisitar um maravilhoso momento em que a música popular brasileira nos ensinou a rir com irreverência e sagacidade.
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