Documentário traz de volta a saudosa TV Manchete - Confira o Teaser

domingo, 7 de junho de 2009

O dissidente dos Mamonas Assassinas

Ele preferiu o anonimato ao estrelato. Não vendeu milhões de discos e nunca apareceu no Faustão. Mas hoje ainda toca, nas horas vagas


Victor Affaro
Mamona-Na-Nas
Quem vê o gerente de orçamentos Márcio Araújo imerso em planilhas não imagina seu passado no grupo que, após a sua saída, daria origem aos Mamonas Assassinas

Eram 6h30 em Guarulhos quando a porta do quarto se abriu e Márcio, ainda no escuro, pôde ouvir a voz de seu pai:

– Aconteceu um acidente com o avião dos meninos.

José Araújo havia acordado quase uma hora antes. Montador de esquadrias de alumínio, ele tinha o hábito de chegar cedo aos canteiros de obra e, em razão disso, raramente se demorava na cama. Era o oposto do filho, jovem notívago, para quem 6h30 era cedo demais para acordar em um domingo, cedo demais para encarar o dia, cedo demais para traduzir, de supetão, aquelas palavras.

– Meninos? Que meninos, pai? – o rapaz perguntou, esforçando-se para se desvencilhar do travesseiro.

– Os meninos, Márcio. Os meninos da banda.

O sono desapareceu imediatamente.

Márcio correu para a sala e grudou os olhos na TV. Sua mãe, Marcolina, acompanhava o noticiário. Naquele momento, eram exibidas as primeiras imagens aéreas da Serra da Cantareira. Equipes de resgate cercavam a área à procura do jatinho Learjet que, segundo a reportagem, decolara em Brasília às 22h rumo ao aeroporto de Guarulhos e teria se chocado com o solo pouco depois das 23h. Naquela manhã de 3 de março de 1996, Márcio não acreditou quando as câmeras focaram os escombros da fuselagem. Sete meses após o lançamento do único CD, que venderia 2,3 milhões de cópias, o grupo Mamonas Assassinas encerrou a vertiginosa carreira de forma trágica. Os “meninos da banda” estavam mortos.

 Reprodução

– Caramba, eu poderia estar nesse voo – foi a reação de Márcio, então um engenheiro de 24 anos que trabalhava na filial paulistana da Líder, incorporadora com sede em Belo Horizonte.

Hoje, passados 13 anos, Márcio Cardoso de Araújo é gerente de orçamentos de uma das maiores incorporadoras do país. Quem o vê, de terno e gravata, imerso em cálculos e planilhas, discutindo preços com fornecedores com o rigor de um executivo ponderado, não imagina estar diante de um tecladista que, no início dos anos 90, partilhava solos e compassos com os irreverentes integrantes dos Mamonas Assassinas – quando eles ainda formavam a banda Utopia e não tinham descoberto o fascinante mundo do besteirol.

Instalado no terceiro andar de um escritório no Morumbi, aos 37 anos, Márcio lembra o acidente na Cantareira como quem confere a fisionomia de velhos amigos em um álbum de retratos. “Fiquei mal quando eles morreram. Chorei muito naquele dia”, diz. O pessoal de Guarulhos, que conhecia as origens do grupo e havia acompanhado de perto a ascensão profissional da banda, o cumprimentava no velório com a gravidade de quem se dirige a um sobrevivente.

– Puxa, Márcio, só sobrou você... – os mais próximos chegaram a comentar.

Arquivo pessoal de Dona Nena
Atenção, Creuzeback
Em sentido horário, os Mamonas, quando ainda se chamavam Utopia: Márcio (à dir., segurando a bateria), Samuel e Sérgio Reoli, Dinho, Bento Hinoto e Júlio Rasec

Márcio tinha 18 anos quando foi convidado pelo amigo Sérgio Reoli, que namorava uma vizinha sua, a entrar na Utopia, típica banda de garagem formada no ano anterior. Sérgio era o baterista, e seu irmão, Samuel, o baixista. Completavam o quarteto o guitarrista Alberto Hinoto, que mais tarde adotaria o nome artístico de Bento, e o vocalista Dinho Alves, que havia entrado para o grupo semanas antes, após dar uma canja em um show no Parque Cecap (conjunto habitacional de Guarulhos). Sérgio sabia que Márcio tocava teclado e se entusiasmou com a possibilidade de transformar o grupo em um quinteto. Logo depois, Júlio Rasec, fiel escudeiro de Dinho, seria incorporado para fazer vocais em inglês, auxiliar o titular do microfone na pronúncia americana, quebrar um galho como percussionista e colocar em prática sua experiência como técnico em eletrônica para consertar fios e cabos quando necessário.

Os seis amigos se reuniam nos fins de semana na casa de Sérgio e Samuel. Quando não havia ensaio, se encontravam do mesmo jeito, para jogar fliperama, comer pizza ou varar a noite em torneios de videogame. “O Samuel era viciado. Ele e o irmão chegaram a montar uma locadora na sala da casa deles”, diz Márcio. “Nossa convivência era muito intensa.” O repertório mesclava Ira! com Legião Urbana, Rush com Red Hot Chili Peppers, e tragava o que havia de pior e de melhor no rock dos anos 80, com Titãs, Paralamas, Barão, Ultraje, entre outros. Em 1991, o grupo já se apresentava em diversos endereços de Guarulhos e de São Paulo e seus integrantes suavam a camisa para acomodar a bateria no Fusca de Sérgio. “Eles animavam as festas juninas e viraram atração permanente no clube do Parque Cecap”, diz Audrey Pacaterra, gerente administrativa da Secretaria de Cultura de Guarulhos e moradora do bairro até hoje. Fã de primeira hora e amiga do sexteto, ela editou o primeiro fanzine dedicado à Utopia. “Eu os ajudava a customizar as roupas, rasgar e bordar as calças daquele jeito que aparece no disco”, afirma, referindo-se ao único vinil gravado pela banda, de 1992.

Victor Affaro
Music is very good
Márcio, que jamais aposentou o teclado, toca na companhia dos filhos, João Pedro, de 6 anos, e Luísa Maria, de 2, na sala de casa, em Guarulhos
Impulsionada pelas repetidas aparições em um programa de TV apresentado pelo pai de Mirella Zacanini, a namorada de Dinho na ocasião, a Utopia passou a receber convites para se apresentar em outras cidades. “Com o empurrão do Savério Zacanini, tocamos em alguns palcos do interior e também em outros estados”, diz Márcio. Foi o início de seu afastamento. O engenheiro, que na época ainda cursava engenharia civil na Universidade de Guarulhos, conta que a rotina de ensaios e viagens tornou-se um obstáculo para seus estudos e projetos profissionais. Assistente técnico em uma empresa que editava publicações voltadas ao mercado imobiliário, Márcio tinha seu curso pago integralmente pelo escritório e começava a se assustar com a ideia de “levar bomba”. “A gente tocava à noite em bares de São Paulo, como o Victoria Pub, da Alameda Lorena, e, para isso, eu faltava ao trabalho à tarde e também na manhã seguinte”, diz ele. “Na hora em que o facão aparecesse, as primeiras cabeças a rolar seriam as dos funcionários menos comprometidos. Todos os outros músicos do grupo ficaram desempregados. Eu não poderia correr esse risco, porque bancava muita coisa em casa.”

Entre a vida louca dos bares e a prontidão que a engenharia exigia, Márcio escolheu a segunda opção. Passou a faltar nos ensaios de sábado quando havia aulas na faculdade e nas viagens em dias úteis. Pelo mesmo motivo, não chegou a gravar nenhuma das faixas do disco da Utopia, embora apareça na fotografia da capa. “Eles foram ao estúdio num sábado em que tive prova. O pior é que levei bomba do mesmo jeito”, diz ele, bem-humorado. Márcio tocava por hobby, e não para fazer da música sua profissão – o que se tornou o sonho de seus parceiros a partir de 1992. “Um dia, eles me chamaram para conversar. Eu não tinha condição de fazer tanto ensaio, e eles precisavam de um tecladista que pudesse se dedicar integralmente à banda”, afirma. O jeito foi deixar a vaga para Júlio, amigo de Dinho que tocava triângulo e pandeiro em algumas faixas. “Ele aprendeu um pouco de teclado e me substituiu.”

 Reprodução
O preço da desistência seria cobrado em 1995, quando a banda estourou. As rádios não paravam de executar “Pelados em Santos” e “Vira-vira”. Faustão e Gugu disputavam a presença do grupo em seus programas como duas máfias adversárias. Márcio via os Mamonas na TV e não conseguia evitar uma pitada de arrependimento. “Em pouco tempo, os caras começaram a circular de carro importado por Guarulhos e eu continuava a pé.” Os colegas da faculdade, que anos antes frequentavam os shows da Utopia, não perdoaram. “Você se deu mal”, diziam. “Os caras estão na melhor, e você deixou a chance escapar.” Márcio havia entrado na Líder pouco tempo antes e, ao vislumbrar o sucesso do grupo, não resistiu ao orgulho de contar aos amigos sobre o tempo em que havia feito parte dele. “Seu apelido passou a ser Mamoninha”, lembra Fábio Franco, dono da incorporadora Bild, que em 1995 era chefe de Márcio na Líder. “Nós tiramos tanto sarro dizendo que ele poderia estar milionário àquela altura que perdemos a fala meses depois, quando o azarado virou o maior sortudo do planeta.”

O inferno virou céu. No curto intervalo entre o lançamento do disco e a queda do avião, Márcio viu apenas uma vez um integrante do grupo, num dia em que foi visitar os irmãos Reoli e encontrou apenas Samuel em casa, rendido por uma gripe. Só foi revê-los no velório. Quando morreram, Júlio tinha 28 anos, Sérgio, 26, Bento, 25, Dinho, 24, e Samuel, 22. Recentemente, Márcio foi procurado pelo cinegrafista Cláudio Kahns para gravar um depoimento para o documentário Mamonas Doc, que deve estrear em junho. Raríssimas são as pessoas que, ao lembrar a trajetória dos Mamonas Assassinas, mencionam o sexto integrante da Utopia – ainda que Marcio tenha passado mais tempo com a banda do que ela durou sem ele. Casado com a professora Gisele, Márcio é pai de João Pedro, de 6 anos, e Luísa Maria, de 2. Mora em um sobrado de classe média em Guarulhos, a 30 metros da casa de Seu Ito e Dona Nena, pais de Sérgio e Samuel – a mesma casa onde, há quase 20 anos, ensaiava e jogava videogame com os amigos. Por paixão à música, Márcio jamais aposentou o teclado. Desde que saiu da Utopia, acompanhou uma cantora de música sertaneja, teve outras bandas de pop-rock, tocou em bares e em praças de alimentação de shoppings, fez festas e bailes de formatura e, há mais de um ano, toca rock dos anos 60 e 70 em uma banda chamada Friends. Em julho, aliás, seus integrantes receberão convidados especiais para um show em tributo aos Mamonas Assassinas a ser realizado em Jundiaí. O quase Mamona vai estar lá.

Celina Germer

“ O NOSSO WORK É PLAYAR ”

Toda a carreira dos Mamonas Assassinas durou só oito meses: do lançamento do único cd, em julho de 1995, ao acidente com o Learjet, em março de 1996. Parece pouco tempo. E foi. Quem acompanhou a trajetória da banda é capaz de jurar que ela existiu por mais de dois anos. Foi tanta escatologia, tantas gargalhadas provocadas por cinco rapazes vestidos de Chapolin e tantos hits executados nas rádios, que o tempo parece ter esticado para acomodar tamanha alegria. O documentário Mamonas Doc, dirigido por Cláudio Kahns, ajuda a entender o segredo: eles não paravam um segundo e provocavam-se como se estivessem no centro de uma guerra de mamonas. Com pré-estreia agendada para 6 de junho no Ginásio Thomeuzão, em Guarulhos, o filme, de uma hora e meia, é quase todo costurado a partir de imagens captadas pelos próprios músicos nos bastidores de shows, turnês e gravações. Ali, as cenas funcionam não só como tributo e registro biográfico da banda, mas principalmente como um passaporte despretensioso que nos permite invadir sua privacidade e revisitar um maravilhoso momento em que a música popular brasileira nos ensinou a rir com irreverência e sagacidade.

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