Ameaçada pela pior recessão em seis décadas, a indústria automobilística prepara uma revolução. Os carros da próxima geração serão movidos a eletricidade e outras energias limpas
Chevrolet Volt, em Genebra: Automóveis elétricos e híbridos prometem mudar a face de uma indústria que emprega 50 milhões de pessoas e enfrenta sua pior crise
Todas essas novidades tecnológicas apostam em um novo caminho para a mobilidade, mais limpo e melhor do que a fedorenta e esfumaçada gasolina. O que empurra os protótipos são baterias, semelhantes às de qualquer computador portátil ou telefone celular. São silenciosas, limpas e prometem mudar a face de um setor que emprega 50 milhões de pessoas ao redor do mundo, entre empregos diretos e indiretos, e gira quase US$ 2 trilhões por ano. Parece obra de ficção científica, mas a primeira leva dos protótipos elétricos deverá começar a se massificar em menos de dois anos nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Terão a vantagem de livrar o ar do planeta da poluição e, milagre!, podem colocar do mesmo lado ecologistas e fabricantes de automóvel, há poucos meses inimigos irreconciliáveis.
A ironia é que, neste caso, a pior crise econômica das últimas seis décadas está ajudando a queimar etapas. Encurraladas por uma recessão brava, as montadoras precisam correr em busca de empréstimos bilionários dos governos. As americanas General Motors e Chrysler só não quebraram, no final do ano passado, porque conseguiram US$ 17,4 bilhões junto aos cofres públicos, com as bênçãos do Congresso americano (em março, queriam mais US$ 22 bilhões). Renault e PSA, os dois maiores construtores de automóveis franceses, conseguiram 3 bilhões de euros cada com a condição de investirem em tecnologias limpas – e assim puderam continuar suas operações. Esse fenômeno se repetiu na Alemanha, no Japão e na China.
“Construir veículos mais limpos e reinventar a nossa indústria é um desafio que aceitamos de bom grado, desde que os governos nos ajudem”, disse a Época NEGÓCIOS o americano Robert Lutz, vice-presidente mundial da General Motors, considerado um dos homens mais influentes da indústria automobilística. “Isso não é difícil, já que dez entre dez empresas do nosso setor hoje precisam desesperadamente de dinheiro.” Pois é aí mesmo que está o xis da questão para a forte aceleração nos projetos de carros ecologicamente corretos. Quase todos esses empréstimos públicos têm uma contrapartida carimbada: o investimento em novas tecnologias, que transformem os automóveis em máquinas limpas, opostas às beberronas de petróleo e poluentes que foram até hoje. E ainda há mais incentivos para bancar pesquisas em novas tecnologias.
O carro de US$ 2 mil: Ratan Tata lança em Mumbai, na Índia, o Nano, veículo de série mais barato do mundo
A boa notícia é que há cada vez mais dinheiro e gente grande envolvida nesse jogo. A consultoria americana McKinsey estima que no ano passado US$ 1,1 bilhão foi gasto em pesquisas para fazer baterias mais baratas e eficientes, quase nove vezes mais que o investimento realizado em 2003. E toda grande montadora está investindo em parcerias com fabricantes de baterias. Casamentos que envolvem titãs, como a alemã Bosch e a coreana Samsung. A Toyota comprou 60% da Panasonic EV Energia e fez uma parceria com a Matsushita Electric. A Volkswagen associou-se à coreana Sanyo, uma das maiores fabricantes para baterias de íon-lítio, e a Nissan (e por tabela a Renault) associou-se à NEC. Para não ficar comendo poeira, a GM fez uma parceria de US$ 1,8 bilhão com a A123Systems para construir uma fábrica de baterias de íon-lítio nova em folha em Michigan, que criará 7 mil empregos. A bateria está mesmo a um passo de virar peça de automóvel.
Sucede que para chegar ao paraíso dos carros evoluídos e limpos, dez entre dez montadoras terão de sobreviver a um ano “darwiniano”, nas palavras do presidente mundial da Daimler-Benz, o alemão Dieter Zetsche. E isso não está fácil. Nos Estados Unidos, o mercado deixou de vender 3 milhões de automóveis nos últimos 12 meses. É o nível mais baixo dos últimos 17 anos. Na Europa, a situação também anda horrível, com previsão de queda de um quinto da produção e ameaça de fechamento de 16 fábricas no continente. No Japão, a recessão também acertou em cheio as montadoras locais, que no final de fevereiro decidiram cortar sua produção drasticamente. Na Honda, o talho foi de 33,5%, na Toyota, de 30,1%. A Nissan reduziu a cadência de sua linha de montagem em 50% e confirmou o fechamento de 20 mil vagas neste ano.
A atual crise econômica foi especialmente ruim para a indústria automobilística porque a falta de crédito na praça secou os fluxos de caixa, vitais para a sobrevivência desse negócio como o ar é para os pulmões. Para se manter ativas, as montadoras tiveram de queimar as próprias reservas e, quando não deu mais, buscaram ajuda governamental para manter suas portas abertas. A francesa PSA torrou 3,8 bilhões de euros no final de 2008. No mesmo período, sua conterrânea Renault deu cabo de quase 4 bilhões de euros, e a dívida da italiana Fiat cresceu imensos 78%, para 5,9 bilhões de euros. “Nos próximos meses, a prioridade número 1 das empresas do nosso setor será recompor o caixa”, diz o franco-brasileiro Carlos Ghosn, presidente mundial da Aliança Renault-Nissan e da Associação Europeia dos Construtores de Automóveis (ACEA). “Como aconteceu nos anos da depressão da década de 30, quem ficar em situação mais frágil em sua tesouraria deverá cair ou ser absorvido.”
Robert Lutz, da GM: “Produzir carros limpos é um desafio que aceitamos, desde que os governos nos ajudem”
Nesses movimentos de mercado pode pintar em breve uma separação da alemã Opel, hoje parte da GM. Para fazer jus a uma ajuda de 3,3 bilhões de euros do Tesouro alemão, a hoje subsidiária europeia deverá ganhar autonomia. O certo é que deverão acontecer mais parcerias pontuais entre as montadoras para desenvolver novos automóveis, já que criar um modelo custa, pelo menos, US$ 500 milhões.O cenário que os fabricantes de automóveis enxergam agora lembra muito o que aconteceu no mundo há 80 anos. Nos dias que se seguiram à sexta-feira negra em Wall Street, o valor de um título negociado da General Motors despencou 90% nos pregões. Desastre similar acaba de se repetir. Este ano, a ação da maior montadora americana chegou a valer mero US$ 1,27, valor mais baixo desde 1933. A GM venceu a primeira crise mundial, mas marcas de prestígio, como Essex, Franklin, Reo, Duesenberg, Oakland e La Salle, entre tantas outras, não resistiram a ela e fecharam suas portas. Para não repetir a quebradeira, o receituário das grandes montadoras repete a mesma fórmula: adequar a produção, cortar custos, reduzir o tamanho dos estoques nos pátios das concessionárias e arriscar. “A indústria automobilística certamente será bastante diferente quando esta crise for embora, dentro de alguns meses”, disse a Época NEGÓCIOS o indiano Ratan Tata, um dos candidatos a se dar bem com os novos tempos. “Sabe-se que depois da recessão o mercado será outro, e aqueles que resistirem à crise terão de reinventar a mobilidade.”
Dono do maior conglomerado industrial da emergente Índia, no ano passado Tata tornou-se manchete nos quatro cantos do planeta, quando anunciou o Nano, um automóvel de US$ 2 mil, e quando arrematou da Ford as inglesas Jaguar e Land Rover. Promete continuar na crista da onda quando lançar uma versão a bateria do carrinho, já batizada de E-Nano. Será construído na Noruega em parceria com a Miljobil Grenland, que detém a tecnologia, e será exportado para o mercado americano por meio de uma parceria que os indianos têm com a Fiat, que deve se tornar acionista da Chrysler. Se Tata conseguir emplacar seu modelo, poderá se tornar um símbolo dos novos tempos. Há 60 anos, quando a crise começou a ir embora, os carros tiveram de ser mais acessíveis, baratos e melhores. Foi quando apareceu o Fusca, carro inventado pelo austríaco Ferdinand Porsche para Adolf Hitler.
É claro que a chegada de uma nova tecnologia deverá mexer para valer com a própria maneira de vender carros. “Não há sentido para um consumidor investir US$ 50 mil em um carro elétrico”, diz o engenheiro americano Douglas Quickley, diretor da Chrysler. “Como essa tecnologia deverá progredir muito nos próximos anos, o melhor caminho será oferecer os modelos por meio de leasing.” Um outro caminho, seguido pelo empresário israelense Shai Agassi, será alugar as baterias. Usá-las (e ter acesso a uma rede de recarga a ser instalada em países como Israel, Portugal, Dinamarca e cidades dos Estados Unidos) poderia custar 60 euros semanais. É um sistema parecido com o que fazem as operadoras de telefonia celular. E haverá eletricidade para carregar tanto carro elétrico? “Claro que sim”, diz o pesquisador suíço Marco Piffaretti. Segundo ele, uma frota de 3 milhões de carros elétricos (mais ou menos a produção anual de veículos novos no Brasil) teria um impacto de menos de 3% em relação ao consumo. “Com um batalhão de engenheiros trabalhando nas baterias e dinheiro para investir, a tendência é que elas não parem de progredir e os automóveis sejam mais econômicos”, diz Piffaretti. Um exemplo do avanço é um protótipo da Mitsubishi, o i MiEV, um compacto capaz de acelerar a 82 km/h. Seu grande atributo? Recarrega 80% da bateria de íon-lítio em cerca de meia hora e pode rodar 120 quilômetros sem sustos.
Curiosamente os carros elétricos, hoje moda nos salões do automóvel, já foram considerados azarões nessa corrida para o futuro. Nos anos 90, o ex-vice-presidente americano Al Gore, hoje alçado à condição de guru ecológico, lançou um programa de incentivos para as montadoras lançarem veículos que consumissem menos combustível. A GM criou o EV1. Foram produzidos 1,1 mil carros movidos a pilhas de níquel-metal-hidruto, que podiam ser alugados por tarifas a partir de US$ 299 mensais. O veículo tinha autonomia para 240 quilômetros (recarregáveis em 80% em três horas) e atraiu interessados, mas foi retirado de cena, em 2001, quando quase toda a frota foi destruída.
Parecia que os carros elétricos nunca emplacariam, até que em 2003 um engenheiro dos Estados Unidos, Martin Eberhard, decidiu fazer uma experiência maluca. Teve a ideia de colocar 6.931 baterias de telefones celulares dentro da carroceria de um Lotus Elise, para fornecer a energia capaz de acionar o seu motor. Ele andou – e muito. Agora os elétricos vêm se transformando em moda para os formadores de opinião, como os atores George Clooney e Leonardo di Caprio, e para empresários como os fundadores do Google, Sergey Brin e Larry Page, todos donos de um Tesla Roadster, comprado por US$ 92 mil. Pode estar chegando a hora de você também ter um carro elétrico na garagem.
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