Pesquisadores temem expor pessoas a riscos em testes controlados.
Até agora, trata-se de uma ladainha familiar: vários estudos sugerem que o álcool, se consumido com moderação, pode promover a saúde cardíaca e até mesmo prevenir a diabetes e a demência. São tantas evidências que alguns especialistas consideram o consumo moderado da bebida – cerca de uma dose por dia para mulheres, duas para os homens – um componente central de um estilo de vida saudável. Porém, e se tudo isso for um grande engano?
Para alguns cientistas, essa pergunta nunca vai embora. Nenhum estudo, afirmam os críticos, jamais provou uma relação causal entre o consumo moderado de álcool e a diminuição no risco de morte – somente que os dois elementos geralmente estão juntos. Pode ser que o consumo moderado de álcool seja apenas algo que as pessoas saudáveis tendem a fazer, não algo que as torna saudáveis.
"Quem bebe moderadamente tende a fazer tudo certo – eles se exercitam, não fumam, comem bem e bebem moderadamente", disse Kaye Middleton Fillmore, sociólogo aposentado da Universidade da Califórnia, em São Francisco, que criticou a pesquisa. "É muito difícil desmembrar todos esses fatores, e este é o verdadeiro problema."
Alguns pesquisadores afirmam estarem assombrados pelos erros cometidos em estudos sobre terapia de reposição hormonal, que foi amplamente prescrita por anos com base em estudos observacionais similares àqueles sobre o álcool. Perguntas também foram levantadas em relação às relações financeiras que brotaram entre a indústria de bebidas alcoólicas e muitos centros acadêmicos, que aceitaram dinheiro da indústria para o pagamento de pesquisas, treinamento de estudantes e promoção das descobertas.
Nem um único estudo
"O fato é que não houve um estudo sequer realizado sobre o consumo de álcool e os resultados de mortalidade que seja um 'padrão de ouro' – o tipo de testes clínicos controlados e randômicos que seriam exigidos para aprovar um novo agente farmacêutico neste país", disse Dr. Tim Naimi, epidemiologista do Centro de Controle e Prevenção de Doenças.
Até mesmos ávidos defensores do consumo moderado de bebida alcoólica suavizam suas recomendações com alertas sobre os perigos do álcool, que tem sido atrelado a câncer de mama e pode levar a acidentes, mesmo se consumido em pequenas quantidades, além de estar relacionado a doenças do fígado, câncer, problemas cardíacos e derrames, se consumido em grandes quantidades.
"É muito difícil formar uma mensagem única, pois uma coisa não serve para todos aqui, e a mensagem de saúde pública tem de ser bastante conservadora", disse Dr. Arthur L. Klatsky, cardiologista em Oakland, Califórnia, autor de um estudo significativo no começo da década de 1970 que descobriu que membros da Kaiser Permanente (a maior organização nos Estados Unidos para serviços de saúde abrangentes) que bebiam com moderação tinham menos probabilidade de serem hospitalizados devido a ataques cardíacos, em comparação aos abstêmios. Desde então, ele tem recebido bolsas de pesquisa financiadas por uma fundação da indústria de bebidas alcoólicas, apesar de observar que pelo menos um de seus estudos descobriu que o álcool aumenta o risco de hipertensão.
"Pessoas que não conseguem parar em uma ou duas doses por dia não deveriam beber. Aquelas com doenças no fígado também não devem beber", disse Klatsky. Por outro lado, "o homem de 50 ou 60 e poucos anos que tem um ataque cardíaco e decide se recuperar, abrindo mão de sua taça de vinho à noite – essa pessoa estaria melhor se fosse um consumidor moderado de álcool".
Cautela
Organizações de saúde têm expressado suas recomendações com cautela. A Associação Americana do Coração afirma que as pessoas não deveriam começar a beber para se proteger de doenças cardíacas. As diretrizes de dieta dos Estados Unidos, de 2005, afirmam que "o álcool pode ter efeitos benéficos quando consumido com moderação".
Essa associação foi feita pela primeira vez no começo do século 20. Em 1924, um biólogo da Johns Hopkins, Raymond Pearl, publicou um gráfico com uma curva em forma de "U", suas pontas em ambos os lados representando os maiores índices de morte de bebedores frequentes e abstêmios; no meio, estavam os bebedores moderados, com os menores índices. Dezenas de outros estudos observacionais replicaram essas descobertas, particularmente em relação a doenças cardíacas.
"Com exceção do fumo e do câncer de pulmão, essa é provavelmente a associação mais estabelecida no campo da nutrição", disse Eric Rimm, professor associado de epidemiologia e nutrição da Escola de Saúde Pública de Harvard. "Existem provavelmente pelo menos cem estudos até agora, e o número cresce a cada mês. Isso faz o tema ser único."
Acredita-se que o álcool reduza as doenças coronarianas, pois, conforme se descobriu, ele aumenta o colesterol "bom", HDL, e tem efeitos anticoagulantes. Outros benefícios também têm sido sugeridos. Um pequeno estudo na China descobriu que pacientes mais velhos com deficiência cognitiva que bebem com moderação não se deterioram tão rapidamente quanto abstêmios. Um relatório do Framingham Offspring Study descobriu que consumidores moderados de álcool tiveram maior densidade mineral do em seus ossos da bacia do que abstêmios. Pesquisadores relataram que consumidores moderados têm menos probabilidade, em relação aos abstêmios, de desenvolver diabetes. Aqueles indivíduos com diabetes tipo 2 que bebem levemente têm menos tendência a desenvolver doenças coronarianas.
Quem são os abstêmios?
No entanto, os estudos que comparam bebedores moderados com abstêmios têm sido criticados nos últimos anos. Os críticos questionam: Quem são esses abstêmios? Por que eles evitam o álcool? Existe algo que os deixa mais suscetíveis a doenças cardíacas?
Alguns pesquisadores suspeitam que o grupo de abstêmios pode incluir "ex-bebedores doentes", ou seja, pessoas que pararam de beber por causa de alguma doença cardíaca. As pessoas também tendem a reduzir o consumo de bebida à medida que envelhecem, o que faria do abstêmio padrão uma pessoa de mais idade – e presumivelmente mais suscetível a doenças – em relação à pessoa que bebe com moderação.
Em 2006, pouco depois que Fillmore e colegas publicaram uma análise crítica afirmando que grande parte dos estudos sobre o álcool revisados por eles tinha falhas, Dr. R. Curtis Ellison, médico da Universidade de Boston, defensor dos benefícios do álcool, fez uma conferência sobre o tema. Um resumo da conferência, publicado um ano depois, dizia que os cientistas haviam chegado a um "consenso" de que o consumo moderado de álcool "mostrou ter efeitos predominantemente benéficos à saúde".
O encontro, como grande parte do trabalho de Ellison, foi parcialmente financiado por bolsas concedidas pela indústria. O resumo foi escrito por ele e Marjana Martinic, vice-presidente sênior do Centro Internacional para Políticas do Álcool, um grupo sem fins lucrativos apoiado pela indústria. O centro pagou por dez mil cópias do resumo, incluídos em páginas avulsas gratuitas em duas publicações médicas, "The American Journal of Medicine" e "The American Journal of Cardiology".
Independência?
Em entrevista, Ellison afirmou que sua relação com a indústria não influencia seu trabalho, acrescentando que "ninguém olharia nossas críticas se não apresentássemos uma visão equilibrada". Fillmore e os co-autores de sua análise postaram um comentário online afirmando que o resumo embelezou algumas das divisões profundas que polarizaram o debate na conferência. "Também questionamos as conclusões de Ellison e Martinic de que o consumo mais frequente de bebida alcoólica é o maior indicador de benefícios à saúde", escreveram eles.
Fillmore recebeu apoio da Fundação de Educação e Reabilitação do Álcool da Austrália, um grupo sem fins lucrativos que trabalha para prevenir o abuso de álcool e outras substâncias. Ellison disse que a análise de Fillmore ignorou novos estudos que corrigiam os erros metodológicos de trabalhos anteriores. "Ela acabou dispensando o essencial", disse ele.
Enquanto isso, duas questões centrais permanecem sem solução: se abstêmios e consumidores moderados de álcool são fundamentalmente diferentes e, se forem, se são essas diferenças que fazem com que eles vivam mais, em vez de seu consumo alcoólico.
Naimi, do Centro de Controle e Prevenção de Doenças, que elaborou um estudo observando as características de consumidores moderados de álcool e abstêmios, afirma que os dois grupos são tão diferentes que simplesmente não podem ser comparados. Pessoas que bebem com moderação são mais saudáveis, mais ricas e mais instruídas, inclusive recebem melhor assistência médica, apesar de terem mais probabilidade de fumar. Eles têm até mais tendência a ter todos os dentes da boca, um sinal de bem-estar.
"Pessoas que bebem moderadamente tendem a ser socialmente avantajadas de formas que não têm nada a ver com seu consumo de álcool", disse Naimi. "Esses dois grupos são como bananas e maçãs". Simplesmente aconselhar as pessoas que não bebem a beber não vai mudar isso, disse ele.
Teste controlado
Alguns cientistas afirmam que chegou a hora de realizar um grande teste clínico controlado e randômico, a longo prazo, como aqueles para as novas drogas. Uma abordagem pode ser recrutar um grande grupo de abstêmios que seriam randomicamente orientados a tomar uma dose diária de álcool ou se abster, e então eles seriam acompanhados por vários anos. Outra abordagem seria recrutar pessoas com risco de desenvolver doenças coronarianas.
Entretanto, até os especialistas que acreditam nos benefícios à saúde de álcool afirmam que essa é uma ideia pouco plausível. Grandes testes randômicos são caros, e eles podem não ter credibilidade, a não ser que sejam financiados pelo governo, que provavelmente não assumiria essa tarefa controversa. Existem problemas práticos e éticos em dar álcool a abstêmios sem deixá-los conscientes disso e sem contribuir para acidentes.
Ainda assim, alguns pequenos testes clínicos já estão a caminho, a fim de verificar se diabéticos podem reduzir seu risco de doenças cardíacas ao consumir álcool. Em Boston, pesquisadores do Beth Israel Deaconess Medical Center estão recrutando voluntários com 55 anos ou mais com risco de doenças cardíacas e orientando-os randomicamente a beber limonada pura ou limonada com um pouco de álcool de cereal, enquanto cientistas monitoram seus níveis de colesterol e examinam suas artérias.
Em Israel, pesquisadores deram a indivíduos com diabetes tipo 2 vinho ou cerveja sem álcool. Eles descobriram que os que beberam vinho tiveram quedas significativas no nível de açúcar no sangue, apesar de somente após o jejum. Os cientistas israelenses estão agora trabalhando com uma equipe internacional para iniciar um amplo teste, com dois anos de duração.
"A última coisa que queremos, como pesquisadores e médicos, é expor pessoas a algo que possa prejudicá-las. É esse medo que nos impediu de fazer os testes", disse Dr. Sei Lee, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, que recentemente propôs uma ampla pesquisa sobre álcool e saúde. "Porém, essa é uma questão realmente importante", ele continuou. "Porque aqui temos uma substância prontamente disponível e amplamente consumida que pode, na verdade, ter um significativo benefício à saúde – mas não sabemos o suficiente para fazer recomendações."
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